quarta-feira, 26 de outubro de 2016
Laços perenes
O professorado é uma linda carreira, pois nos proporciona relações indeléveis. Vê-se um rosto familiar e o primeiro pensamento que nos ocorre é: “Terá sido aluno nosso lá trás?” E quase sempre acertamos. Conversa vai, conversa vem, nossa intuição se confirma.
O tempo corre sem cessar, tal rio que visita altos e baixos, às vezes caudaloso, outras, de calmaria ímpar, apenas quebrada pelo burburinho, o melhor sonífero para espíritos conturbados. Assim também seguem as vidas que se cruzam e se dispersam, cada qual rumo a caminhos forrados ora de algodão, ora de pedras, o que é normal nesta existência efêmera.
Porém, eis que essas vidas voltam a se cruzar via meandros inusitados. São reencontros carregados de emoção e ansiedade. Retêm-se talvez as lágrimas, mas a vontade de recontar o passado é irrefreável. E são tantos os reencontros!
Em tarde qualquer... _ Nossa! Há anos eu queria rever a senhora. Pensava em como estaria aquela professora doce, calma, que me recomendara muita leitura, para aprimorar a escrita e ampliar o vocabulário. Que alegria revê-la!_ ouço de uma moça bonita, meio grisalha...
E nunca me esquecerei de quando fui parar num aniversário e, no meio do bate-papo, alguém lembrou que era o Dia do Professor. Incontinenti, Bia, mulher feita, mas conservando o ar brejeiro que a caracterizava quando estudante, voa casa adentro e volta com o Dicionário de Ideias Afins da 5ª série, material de redação do fantástico Prof. Hildebrando Sodré. Corações aos pulos, curtimos aquele momento único, precioso.
Em consultórios, ouvi de carecas cinquentões que eu tinha dado aula para eles. O interessante é que falam (sim, ‘falam’, pois a história ainda se repete) com certa timidez, como se fossem os garotinhos de décadas atrás.
Dentre tantos desses laços fortes que compõem a vida de qualquer mestre, um bem engraçado e jamais esquecido valeu-me certo “mea culpa”.
Um garoto gordinho ostentava rabo-de-cavalo e fazia charme com ele, como se fosse joia rara. Embora nos seus 10 ou 11 anos, estava claro que fazia furor entre as meninas da turma... Durante as aulas, eu mexia com ele:
_ Qualquer noite, quando você estiver dormindo, vou passar a tesoura nesse seu rabinho!
Mil anos depois, o homenzarrão, chefe de família, me confessa:
_ Professora, sabe aquela história em que a senhora dizia que iria cortar meu rabo? Pois eu cheguei a ter pesadelo de que amanhecia sem ele...Só depois de conferir que ele continuava grudado na minha cabeça, eu sossegava...
_ Puxa vida, querido, como eu mexia com você, não ? Quanto tempo faz isso! Ah, agora lembro também de outro lance : o dia em que você ficou boquiaberto quando perguntei para a classe quem fazia a cama de manhã, antes de ir à escola... Ah, Guto, tempo bom aquele! Mas me perdoe se judiei de você por causa do seu rabo. Nunca imaginei que levasse minha ameaça a sério. Nunca mesmo!
Como havia outros ex-alunos presentes nessa ocasião, o rabo-de-cavalo do Guto puxou o fio de uma meada gigantesca e macia. Ela que só cessou de ser desenrolada quando o cuco anunciou a meia-noite. Mais um dia chegava. Trazia, quem sabe, outros laços perenes a reviver. Eles são, na verdade, o tempero dadivoso do professorado.
Para finalizar, registro a emoção indescritível de, no Externato Sto. Agostinho, em São João, eu ter lecionado para os bisnetos de dona Zulmira Lambert, minha dedicada professora de matemática no ginásio do Colégio “Canadá”, em Santos.
Out/16 minesprado@gmail.com
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