quarta-feira, 8 de junho de 2016

A língua da Nina

A língua da Nina À época em que a culinarista Nina Horta era colaboradora da Folha de S. Paulo, eu devorava suas crônicas, sobretudo quando me remetiam à infância, trazendo saudosismo de certas iguarias. Uma delas jamais esquecerei: falava de língua defumada. Só de pensar, já me vem água na boca. Na casa de vovô havia uma cozinheira fantástica. “Sua” língua defumada, guarnecida de purê de batatas, era divina. Passei anos em busca de alguma que chegasse aos pés dela. Quase desisti, mas Nina aguçou minha vontade de comer a bendita língua. Numa crônica ela mencionou a tal língua e mais outras delicias que já não se encontram por aí, nem tampouco cozinheiras que as preparem. Como adoro interagir com a turma de colunistas da Folha, enviei e-mail à Nina, elogiei seus rabiscos, mas claro que a língua da casa de vovô foi o ponto central dos meus comentários. Para minha surpresa, recebi resposta gentil da Nina. Ela prometeu que iria arranjar-me uma língua. Mencionou alguns locais da Pauliceia Desvairada onde costumava fazer compras, inclusive a Casa Santa Luzia, famosíssima pela qualidade de produtos raros. Confesso que fiquei deslumbrada com a boa vontade dela para com esta ilustre desconhecida, mera leitora da Folha. Agradeci a gentileza, disse-lhe que, então, me passasse o valor da língua e das despesas com Sedex. Sim, a língua viria pelo correio (rs). Algumas semanas depois, ela comunicou-se novamente comigo – só encontrara línguas muito gordas, portanto de má qualidade, mas continuaria a procurar. Então, dei o caso por encerrado. Esqueci-me, mesmo, da língua defumada, ou melhor, conformei-me de que se fora com minha infância e ponto final. E, claro, a Nina, mulher superativa, requisitada, também já deveria ter arquivado a promessa dela... Mas certas coisas insistem em ressurgir do nada. Dia destes recebi a visita de dois amigos queridos para mais um cafezinho regado a papo de todo jeito. Não sei como conseguimos falar e falar de tantos assuntos, transitando de um para outro como se brincássemos de autorama (desculpe-me o leitor, é o que me ocorre agora: aquela pista de trilhos montados em forma de oito). Nesse trânsito delicioso, acabamos por falar do que gostamos ou não, em termos de comida: dobradinha, lula, marisco, polvo etc., etc. e de língua. Claro que, na hora, desenterrei a “minha” língua e já fui dizendo: “Tem que ser defumada”. Iria repetir a história da Nina, mas um dos “meninos” que me visitavam cortou-me a palavra: _ Olhe, vá a Brasília; lá tá cheio de político que tem ou precisa ter a língua defumada..._ E gargalhou gostosamente. Gargalhamos, eu segurando meu tórax dolorido, pois ainda me recuperava de uma aterrissagem forçada na pista da Esportiva. Logo nosso autorama funcionou pra outro lado, até que a noite caiu e os “meninos” partiram. Fiquei frustrada por eles não ouvirem a história da língua defumada que poderia ter chegado via Sedex. Poderia... Nina não escreve mais para a Folha e, a estas horas, já deve ter me enterrado com “língua” e tudo. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Junho/16 Publicado no Extra News em 8/6/16

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