quarta-feira, 9 de março de 2016

Cafezinho com a língua portuguesa

Cafezinho da tarde com amigos queridos rende papo proveitoso. Entre risos e polêmicas sem mesmice, temos assunto pra mais de metro. Num encontro recente, pusemos “a gente” na berlinda. _ Que negócio é este de “a gente” pra cá, a gente pra lá! Somos “nóóóós”_ proclama um deles, bastante politizado e inconformado não apenas com o panorama deste Brasil, mas também com a esculhambação do nosso idioma. Endosso o inconformismo dele. Quem lê jornais, assiste a noticiários, convive com pessoas de todo naipe, percebe que a língua culta é desprezada faz tempo. Falar bonito é exibição de letrado. “Gente”, no sentido de “pessoas”, não é pecado, faz parte do linguajar cotidiano. Porém, “a gente”, no sentido de “nós”, merece uma boa poda. Cansa engolir falação de políticos, repórteres, doutores, enfim, pessoas que são ou se julgam importantes, na base de “a gente sabe”, “a gente prefere”. É dose pra mamute, como dizia o inesquecível colega Joel Beotto, durante suas aulas de Direito Penal. E no embalo do nosso ouro verde, lembramos outros vícios de linguagem que dominam os diálogos Brasil afora: “achismo”, “gerundismo” e “irismo” (Mr. Google não os reconhece, tá?). _ Hoje todo mundo “acha que...”; ninguém pensa nada, acredita em nada _ reclama o politizado, olhar enviesado para nós outros, cada um a fazer mea culpa. Aproveito a brecha para uma aulinha e explico que gerundismo e irismo são influências do inglês: We are going to travel tomorrow, diz-se na terra do Tio Sam e alhures. O que soa melhor: “Nós estamos indo viajar amanhã.” ou “Nós viajaremos amanhã”? Deixemos de lado o futuro próximo _ ele a Deus pertence _ indicado na língua inglesa por to be going to e suas flexões. E mais: to go corresponde ao verbo de movimento “ir”. Quem vai, vai a algum lugar, certo? Um “Certíssimo, professora!” me faz interromper a aula que ninguém pediu: _ Desculpe, pessoal, um minutinho, vou à cozinha esquentar o café. _ “A gente” espera, “acho que” você sabe o caminho _ provoca meu amigo de cabelos nevados, mas que me divirto em dizer que são enevoados. Com café requentado, findamos nossa sessão de chatos de galocha ou, em bom português, implicantes. Se bem que certas implicâncias são úteis. Afinal, como conclui Ferreira Gullar, em “Ler e falar” (Folha de 28/2/16, Ilustrada - C 22): “O que importa é afirmar que falar e escrever corretamente não são esnobismos, mas necessidade da linguagem humana.” Depois dessa tarde, acentuei a autocrítica, policio minha fala, para driblar “a gente”. E mais, desisti de contar quantas vezes a expressão aparece nos noticiários. Nisso a Globo é campeã; ex.: “A gente agora vai falar com a Maju, pra saber como fica o tempo.” Seria mais elegante: “Agora (nós) falaremos com a Maju...”. Noite destas, na TV Cultura, uma geneticista preparadíssima, com respostas elucidativas sobre a longevidade com qualidade de vida, iniciou todas as respostas à repórter com “a gente”. Ela enterrou o “nós” durante o programa inteiro. Que cansaço! Em Coração Bobo,“A gente se ilude, dizendo: _Já não há mais coração”, certo, Alceu Valença? Pois é, caro leitor, nós nos iludimos, ao acreditar que muitas questões tenham conserto, inclusive os maus-tratos com nossa língua portuguesa. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Março/2016