quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Ioiô gigante e este natal

Ioiô gigante e este Natal No século passado, o ioiô era diversão para crianças e adultos. Fazíamos misérias com aquela geringonça composta de duas extremidades redondas e duplas, ligadas por tênue barbante. Disputas eram comuns, sobretudo entre os moleques. Enrolava-se o barbante numa das extremidades e depois se impulsionava a outra para longe. Esta tinha que voltar a nossas mãos. Esse vaivém exigia destreza, mas era prazeroso. Entretanto, o vaivém das atitudes governamentais e políticas, longe de nos divertir, exaure a paciência de qualquer cristão e gera insegurança ilimitada. Hoje temos um ioiô gigantesco chamado Brasil, brinquedo nas mãos de políticos indecentes, corruptos, cuja diversão é roubar o país, afundando-o numa crise sem precedentes. As trapalhadas e maracutaias de todo naipe são deboche diário a desfilar ante nossos olhos. Impotentes num barco à deriva, incertos do amanhã, uma parcela dos cidadãos brinca de faz de conta, prepara-se para o natal com pompa, como se os problemas fossem dos vizinhos, nada mais. A gastança irrefletida persiste, ainda que sob protestos insignificantes. Ouvi ontem, em noticiário qualquer, que o tender, quebra-galho de quem não pode arrotar peru, está a R$ 50,00 o quilo! Ora, em meia hora, meia dúzia de pessoas dá cabo dessa iguaria modesta. Acrescente-se a ela uma farofa, arroz, salada mista, vinho rasteiro, sorvete, tudo menu de quem está com o bolso quase furado, e a conta duplicará. Estou fora de quaisquer preparativos que não incluam buscar paz, amor, saúde. O que vier por acaso será bem-vindo. Visita a alguma igreja (nestes dias estive na de São Benedito, a única que me pareceu acessível e onde encontrei acolhimento ímpar; ali pedi orações pelos migrantes, preocupação maior da beata Assunta Marchetti); reflexão ante meu presepinho acomodado num vaso de vidro “made in” Vila Velha; abraço fraterno dos amigos, calor humano virtual (?) dos filhos ausentes por motivos de foro íntimo, mensagens via rede social, alguns gestos de carinho e pronto: esse será meu natal, longe do ioiô gigante que, inutilmente, insiste em solapar quem não é alienado. Feliz Natal, caros leitores! minesprado@gmail.com Dez/16 Extra News 21 dez/16

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Bengala também dança

Bengala também dança Domingo chuvoso. Levanto cedo, tomo meu café saudável, enquanto assisto, na TV, à missa na Aparecida. Depois ponho música no PC, dou uma espiada nos e-mails, seleciono um que fala dos Anos de Podridão, substitutos dos Anos de Repressão. Respondo ao remetente, um doutor culto, bom de rabiscos, que se tornou meu contato após carta minha publicada no painel do leitor da Folha. Coisas da vida. Lavo louça, ajeito o quarto. Miro bem o andador, agora transformado em porta-roupa. Vestir a mesmice da véspera? Não! Do escritório a música se espalha pela casa. Vontade de dançar... No armário, escolho conjunto de calça e blusa de seda. Visto sapatos de saltinho que já têm quilômetros rodados, inclusive em salões de baile. Maquio os olhos, passo perfume. Arrumo-me toda, como se fosse encontrar o príncipe encantado. Pra quem não sabe, esse sonho de príncipe não tem idade. Adentro o escritório, bengala em punho. Ensaio uns passos tímidos. Animo-me. Sai um samba. “A vida tem que continuar”, diz a letra. Então danço mais um pouco, descobrindo que a bengala é ótimo cavalheiro. Pronto, fiz meu bailinho particular... Chove ainda. Descubro, meio tarde, que se pode fazer de salão qualquer coisa. “Danúbio Azul” embala meus dedos, agora não mais segurando a bengala, mas no teclado do PC. Rabisco e danço tango, fox, bolero, swing, gravação bem selecionada por bom entendedor de música, um amigo que já se foi, mas deixou por aqui suas marcas... Que bom sentir a criatividade ressurgir do nada. Ou melhor, do tamborilar da chuva lá fora. Embora seja domingo, dia de solidão para muitos, não estou só. Graças à bengala, por sinal bem feinha no seu traje metalizado com adereços pretos. minesprado@gmail.con Nov/16 Extra News - 30/11/16

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Laços perenes

O professorado é uma linda carreira, pois nos proporciona relações indeléveis. Vê-se um rosto familiar e o primeiro pensamento que nos ocorre é: “Terá sido aluno nosso lá trás?” E quase sempre acertamos. Conversa vai, conversa vem, nossa intuição se confirma. O tempo corre sem cessar, tal rio que visita altos e baixos, às vezes caudaloso, outras, de calmaria ímpar, apenas quebrada pelo burburinho, o melhor sonífero para espíritos conturbados. Assim também seguem as vidas que se cruzam e se dispersam, cada qual rumo a caminhos forrados ora de algodão, ora de pedras, o que é normal nesta existência efêmera. Porém, eis que essas vidas voltam a se cruzar via meandros inusitados. São reencontros carregados de emoção e ansiedade. Retêm-se talvez as lágrimas, mas a vontade de recontar o passado é irrefreável. E são tantos os reencontros! Em tarde qualquer... _ Nossa! Há anos eu queria rever a senhora. Pensava em como estaria aquela professora doce, calma, que me recomendara muita leitura, para aprimorar a escrita e ampliar o vocabulário. Que alegria revê-la!_ ouço de uma moça bonita, meio grisalha... E nunca me esquecerei de quando fui parar num aniversário e, no meio do bate-papo, alguém lembrou que era o Dia do Professor. Incontinenti, Bia, mulher feita, mas conservando o ar brejeiro que a caracterizava quando estudante, voa casa adentro e volta com o Dicionário de Ideias Afins da 5ª série, material de redação do fantástico Prof. Hildebrando Sodré. Corações aos pulos, curtimos aquele momento único, precioso. Em consultórios, ouvi de carecas cinquentões que eu tinha dado aula para eles. O interessante é que falam (sim, ‘falam’, pois a história ainda se repete) com certa timidez, como se fossem os garotinhos de décadas atrás. Dentre tantos desses laços fortes que compõem a vida de qualquer mestre, um bem engraçado e jamais esquecido valeu-me certo “mea culpa”. Um garoto gordinho ostentava rabo-de-cavalo e fazia charme com ele, como se fosse joia rara. Embora nos seus 10 ou 11 anos, estava claro que fazia furor entre as meninas da turma... Durante as aulas, eu mexia com ele: _ Qualquer noite, quando você estiver dormindo, vou passar a tesoura nesse seu rabinho! Mil anos depois, o homenzarrão, chefe de família, me confessa: _ Professora, sabe aquela história em que a senhora dizia que iria cortar meu rabo? Pois eu cheguei a ter pesadelo de que amanhecia sem ele...Só depois de conferir que ele continuava grudado na minha cabeça, eu sossegava... _ Puxa vida, querido, como eu mexia com você, não ? Quanto tempo faz isso! Ah, agora lembro também de outro lance : o dia em que você ficou boquiaberto quando perguntei para a classe quem fazia a cama de manhã, antes de ir à escola... Ah, Guto, tempo bom aquele! Mas me perdoe se judiei de você por causa do seu rabo. Nunca imaginei que levasse minha ameaça a sério. Nunca mesmo! Como havia outros ex-alunos presentes nessa ocasião, o rabo-de-cavalo do Guto puxou o fio de uma meada gigantesca e macia. Ela que só cessou de ser desenrolada quando o cuco anunciou a meia-noite. Mais um dia chegava. Trazia, quem sabe, outros laços perenes a reviver. Eles são, na verdade, o tempero dadivoso do professorado. Para finalizar, registro a emoção indescritível de, no Externato Sto. Agostinho, em São João, eu ter lecionado para os bisnetos de dona Zulmira Lambert, minha dedicada professora de matemática no ginásio do Colégio “Canadá”, em Santos. Out/16 minesprado@gmail.com

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Script para Sherlock Holmes

Dia lindo, céu azul promissor. Ela quer ampliar o jardinzinho com roseiras. Já tem roseiras rosas, mas agora prepara outras variedades. Roseiras requerem pouco cuidado, tanto que ela, quando viaja, deixa-as ao deus-dará. Vez ou outra, ressecam um pouco, mas logo se reavivam, sempre a enfeitar suas manhãs. Seu primeiro bom dia é para elas, Se há alguma no ponto, com dor no coração, colhe-a para alegrar Nossa Senhora Aparecida num cantinho do seu quarto. Suas rosas duram até quinze dias no vaso, sem perderem o perfume. Mune-se de pá etc., cava a terra, faz pequenos buracos, brigando um pouco com o resto de entulho deixado pelos pedreiros. Vai à cozinha, serra duas pets, para formar redomas, proteção para as pequeninas mudas. Pensa em deixar que a diarista prendada termine o plantio, mas desiste – é do tipo que começa e termina o que faz. Pega tudo, inclusive um facão para aprofundar os buracos. Sai para a área de serviço e, dali para o quintal. Ou melhor..., quase para o quintal, pois um violento tropeção a joga contra o muro do quintal. A parafernália voa longe – garrafas, mudas, facão. O estrondo mostra que algo se partiu. Sente a perna esquerda mole, igual à de boneca de pano. Pronto! Já conclui o por. Arranja fôlego para gritar a diarista, embora note que suas forças balancem. Desmaiar jamais! A diarista chega alarmada. Em dueto principia-se uma reza a céu aberto. As duas imploram para que as forças não lhes faltem, que mantenham a calma e façam o que é preciso fazer – buscar socorro. A boa moça auxilia a doutora, como gosta de chamá-la, a controlar a respiração, até que a cor lhe volte à face. Então chama o 192. Os bombeiros chegam com rapidez e, eficientes, prestam os primeiros socorros, imobilizando a doutora na maca, onde será transportada para o hospital. A grande emoção fica por conta de estar ali presente um rapagão que a vítima vira crescer. Ah, quanta segurança lhe transmitem as belas contas azuis a mirá-la, compassivas, preocupadas, indagando das dores, acalmando. O garotinho que fora seu vizinho nos anos oitenta é, agora, o rapagão que vem acudi-la, com presteza e responsabilidade. E lá vai ela, toda quebrada, pro hospital, cabeça a mil, gastando os últimos esforços na orientação das providências a serem tomadas por quem a socorre, junto com os bombeiros. A via sacra é previsível, Serão meses de recuperação, muita humilhação, doses de paciência e persistência, O que até agora assombra e deixa bom script para algum Sherlock Holmes de plantão é: se o facão que a doutora segurava tivesse mudado de rumo, ao invés de voar longe, o que poderia ter acontecido? Uma barriga furada não viveria para contar a história. Muro não fala. A moça que primeiro socorreu a doutora seria, de imediato, presa como suspeita de tentativa de homicídio ou coisa assim. Quem desfaria esse nó, já que estavam ambas absolutamente sós? minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Agosto/16

sexta-feira, 24 de junho de 2016

PAGU

PAGU Ontem como hoje, quem é diferente da maioria é estranho. Houve época em que a atitude de estranhar o diferente foi denominada de normose, isto é, apontar o dedo para quem não age como a maioria, veste-se fora da moda, anda quase sempre sozinho, lê muito, pouco frequenta lugares em que seus pares “moram” (shoppings, barzinhos etc.). Pois ouso dizer que a sanjoanense Patrícia Rehder Galvão _ Pagu, mulher plural, foi alvo de muitos julgamentos vida afora. Seu maior pecado talvez tenha sido a autenticidade, o assumir-se, o arrojar-se, no sentido de plena realização pessoal sob todos os prismas, seja como mulher, seja como cidadã. Como mulher, Patrícia sobressaia-se da maioria, pois, além de beleza exuberante, era extravagante para o gosto da época. Assim, as mentes estreitas a criticavam pelos cabelos revoltos, pela boca vermelha segurando o cigarro, por curtir a dança, a bebida, por amar demais e intensamente. Na verdade, muita mulher gostaria de ser uma Pagu e muito homem gostaria de tê-la conquistado. Mas também se destacava da maioria, por se interessar pela condição dos desamparados, explorados, o que a levava a altos voos, sem temer as consequências. Idealista, combativa, viveu em eterna dicotomia: ser boa mãe e esposa e ser jornalista, militante política, imiscuindo-se onde nenhuma mulher ousaria meter o nariz. Patrícia Rehder Galvão nasceu em 9 de junho de 1910, nesta terrinha, mas bem poderia ter nascido na Capital, onde a família foi residir quando ela era pequenina. Ali a menina rebelde cresceria, estudaria e, moçoila ainda, transitaria em meio às artes, à política e aos intelectuais nem sempre tão cavalheiros como seria de se esperar. Pagu enredou-se num mundo peculiar, desconhecendo limites, em sacrifício da vida privada e do convívio “normal” imposto pela sociedade dominante. Além de mulher plural, era mulher dividida, com sede de “espiar para além do muro...”. Patrícia, inquieta, inconformada, deixou rastros pelo Brasil afora, notadamente Rio e São Paulo, mas ultrapassou fronteiras: esteve na União Soviética, na China, na França, cruzou os mares do mundo e da vida. Mas os mares santistas foram seu maior bálsamo, tanto que os inseriu em prosa e verso na sua produção literária. Como jornalista, deixou pinceladas em vários periódicos, alguns de duração efêmera, porém foi em A Tribuna, jornal santista, que investiu seu melhor e em que publicou seus últimos rabiscos. Pagu viveu período áureo em Santos, onde faleceu em 12 de dezembro de 1962, sendo enterrada no jazigo 67 do Cemitério da Filosofia (o popular Saboó). Na terra que também é meu berço, Patrícia é estudada nas escolas e, ouso dizer, é reverenciada ad aeternum, por sua profunda influência na vida cultural santista, como grande incentivadora do teatro amador, sendo o irreverente Plinio Marcos sua cria notória. Para não dizer mais, em Santos, o Teatro Municipal Brás Cubas e outros estão reunidos no Centro Cultural Patrícia Galvão. A cadeia em que Pagu ficou presa tornou-se, também, patrimônio histórico, sede da Oficina Cultural Pagu de 1994 a 2012. Em São Paulo, encontra-se o Instituto Patrícia Galvão, que atua em relação aos direitos das mulheres; também na capital, a EMEI Patrícia Galvão; em Guarulhos – SP, existe a EPG Patrícia Galvão – PAGU; em Campinas, o Núcleo de Estudos de Gênero PAGU – Unicamp; em São Gonçalo, RJ., o CIEP 410 Patrícia Galvão. Em São João da Boa Vista, apenas o modestíssimo Centro Cultural Pagu, na rua Benedito Araújo, além de alguns estudiosos da musa. Nada mais. “Parque Industrial” – de 1933, por Mara Lobo, um dos pseudônimos de Patrícia Galvão, traduzido para o inglês pelo professor de literatura em NY, David Jackson, e por este exaltado (1994), é a primeira criação modernista a retratar o proletariado paulista e a desigualdade. Financiada por escritor Oswald de Andrade, primeiro marido de Pagu,é sempre atual, tanto que adotada por professores de literatura latino-americana, como a chilena Lina Meurane, professora na Universidade de Nova York, participante do Festival da Pauliceia Literária (“Mulheres”, Juliana Gomes, Nov./15). “A Famosa Revista”, de 1945, feita a quatro mãos, por Patrícia e Geraldo Ferraz, seu segundo marido, projeta nos protagonistas Rosa e Mosci a ideia de que “a política não pode ser o desejo de qualquer beneficio material, mas a beleza do gesto, a grandeza do sacrifício em prol de um objetivo transcendente.” (da introdução por Sergio Milliet). Frequentemente Pagu é citada por colunistas da imprensa brasileira. A cada menção a ela, vem-me certa tristeza por ela ser tão pouco divulgada em São João da Boa Vista. Quando ocupei a cadeira 36 da ALSJBV, esforcei-me por trazer Pagu até nossos dias. Em 2010, centenário de PAGU, tive a felicidade de estar na Casa das Rosas, na Pauliceia, durante o lançamento de “Viva Pagu”, belo trabalho de Lúcia Maria Teixeira Furlani, estudiosa da jornalista, em coautoria com o filho de Pagu, Geraldo Galvão Ferraz. Que privilégio conhecê-lo em São Paulo e, meses depois, partilhar o palco do nosso teatro com ele, durante a gravação da série EPTV “Pagu, da Serra ao Mar”, título que sugeri, pois Pagu foi da Mantiqueira aos mares santistas. De quebra, jantar no Casarão, onde falamos de tudo, exceto de Pagu, cujos olhos Geraldo (1941/2013) herdou. Em duas oportunidades manifestei-me, na Gazeta de São João e em outros periódicos, sobre a possibilidade de Patricia Rehder Galvão ser estudada nas escolas daqui, assim como acontece em Santos, e também de ela ter um cantinho no Theatro Municipal (vide “Pérola Centenária”,de minha autoria, em homenagem ao centenário do Theatro). Será que, por eu ser uma ilustre desconhecida, tais ideias não mereceram a atenção dos conterrâneos de Pagu? Paciência. “Santo de casa não faz milagre.” , certo? Nos grandes centros e no exterior, aquela que fez a diferença vive para sempre. Aqui, sigo-a por razões que só Deus e eu sabemos. Patrícia Rehder Galvão – Pagu, no seu 106º aniversário (9/6/2016), inspire-nos aí dos Altos. M. Inês de Araújo Prado Junho/2016 minesprado@gmail.com EXTRA NEWS 22/6/16

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A língua da Nina

A língua da Nina À época em que a culinarista Nina Horta era colaboradora da Folha de S. Paulo, eu devorava suas crônicas, sobretudo quando me remetiam à infância, trazendo saudosismo de certas iguarias. Uma delas jamais esquecerei: falava de língua defumada. Só de pensar, já me vem água na boca. Na casa de vovô havia uma cozinheira fantástica. “Sua” língua defumada, guarnecida de purê de batatas, era divina. Passei anos em busca de alguma que chegasse aos pés dela. Quase desisti, mas Nina aguçou minha vontade de comer a bendita língua. Numa crônica ela mencionou a tal língua e mais outras delicias que já não se encontram por aí, nem tampouco cozinheiras que as preparem. Como adoro interagir com a turma de colunistas da Folha, enviei e-mail à Nina, elogiei seus rabiscos, mas claro que a língua da casa de vovô foi o ponto central dos meus comentários. Para minha surpresa, recebi resposta gentil da Nina. Ela prometeu que iria arranjar-me uma língua. Mencionou alguns locais da Pauliceia Desvairada onde costumava fazer compras, inclusive a Casa Santa Luzia, famosíssima pela qualidade de produtos raros. Confesso que fiquei deslumbrada com a boa vontade dela para com esta ilustre desconhecida, mera leitora da Folha. Agradeci a gentileza, disse-lhe que, então, me passasse o valor da língua e das despesas com Sedex. Sim, a língua viria pelo correio (rs). Algumas semanas depois, ela comunicou-se novamente comigo – só encontrara línguas muito gordas, portanto de má qualidade, mas continuaria a procurar. Então, dei o caso por encerrado. Esqueci-me, mesmo, da língua defumada, ou melhor, conformei-me de que se fora com minha infância e ponto final. E, claro, a Nina, mulher superativa, requisitada, também já deveria ter arquivado a promessa dela... Mas certas coisas insistem em ressurgir do nada. Dia destes recebi a visita de dois amigos queridos para mais um cafezinho regado a papo de todo jeito. Não sei como conseguimos falar e falar de tantos assuntos, transitando de um para outro como se brincássemos de autorama (desculpe-me o leitor, é o que me ocorre agora: aquela pista de trilhos montados em forma de oito). Nesse trânsito delicioso, acabamos por falar do que gostamos ou não, em termos de comida: dobradinha, lula, marisco, polvo etc., etc. e de língua. Claro que, na hora, desenterrei a “minha” língua e já fui dizendo: “Tem que ser defumada”. Iria repetir a história da Nina, mas um dos “meninos” que me visitavam cortou-me a palavra: _ Olhe, vá a Brasília; lá tá cheio de político que tem ou precisa ter a língua defumada..._ E gargalhou gostosamente. Gargalhamos, eu segurando meu tórax dolorido, pois ainda me recuperava de uma aterrissagem forçada na pista da Esportiva. Logo nosso autorama funcionou pra outro lado, até que a noite caiu e os “meninos” partiram. Fiquei frustrada por eles não ouvirem a história da língua defumada que poderia ter chegado via Sedex. Poderia... Nina não escreve mais para a Folha e, a estas horas, já deve ter me enterrado com “língua” e tudo. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Junho/16 Publicado no Extra News em 8/6/16

quinta-feira, 26 de maio de 2016

A mobília nova

A mobília nova No dia D, 12/5/16, quando se votou a continuidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e, por consequência, seu afastamento por 180 dias, uma amiga indagou-me no FB: “Você não teria que retratar Brasília hoje?” Pra ser sincera, nem me recordo se lhe respondi ou postei tão somente uma carinha marota, um dos tais stickers que a rede virtual oferece, encolhendo cada vez mais nossa criatividade. Pois creio que, por eu não atender à sugestão dela, essa amiga decidiu vingar-se, invadindo meu sono madrugada adentro. De repente, eu e mais um monte de gente estávamos à espera da própria, na casa dela. Tudo porque ela logo chegaria com sua mobília nova. Reunião estranha essa! Postei-me bem perto da entrada da sala, de tal modo que seria a primeira a cumprimentá-la pela aquisição da mobília e aproveitaria para avisá-la de que não queria ouvir falar de Brasília. Eis que ela chega, toda soberba, mal olha para os lados, vai direto a um espelho centenário e, estática, escancara a mobília novinha, branca demais pro meu gosto. (Era o próprio Narciso fascinado diante do lago...) Ridícula! Depois gargalha, abraça uma sujeita de cabelos curtos, talvez mui amiga dela, e... buá!! _ Mãeeee, quero colo! Será que a mobília nova havia enlouquecido a coitada? Coitada, não. Afinal, ela, que adora quebrar protocolo, havia bagunçado o clima de expectativa, ao cair naquele choro absolutamente teatral É provável que estivesse rindo por dentro. Na sala, todo mundo se entreolhou, sem entender nada, muito menos eu, que nunca pisara na casa dela nem sabia que estava a trocar de mobília... Essa situação maluca me despertou às quatro da matina. Cansada de revirar-me na cama, acendi o abajur. O sono já era. Seria por culpa da amiga, com sua alusão à Brasília, assunto que esgotou minha paciência faz tempo, e mais aquele exibicionismo do sorriso-Omo? Talvez não fosse nada disso, mas sim porque Brasília e mobília dão boas rimas. E, ultimamente, ataques de rima têm baixado em mim sem mais nem menos, só que, agora, até em sonhos é demais. Insone, saquei um bloquinho do criado-mudo e rabisquei até o dia raiar. De qualquer modo, espero que, quando nos cruzarmos nas ruas desta terrinha, minha amiga não me venha contar que, trocou mesmo a “mobília”. Porque aí, incontinenti, mudo de profissão: serei Minês, a vidente... minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Maio/16

quarta-feira, 11 de maio de 2016

As cãs de mamãe (Extra News - abril/16)

As cãs de mamãe Nesta semana criei coragem para rever um monte de fotos da família, para logo iniciar a distribuição entre os filhos. Assim, menos sarilho, quando eu partir. Só que não preveni minha emoção. E agora o inevitável acontece: cada foto sacode a poeira do passado.Algumas lágrimas correm e me fazem entender que essa partilha antecipada custa tremenda saudade. De chofre, dou com mamãe ao lado de papai quase moribundo. Que lindinha ela era, da cabeça aos pés. Ela e a preocupação com os cabelos alinhados. De toda a mulherada da família, minha mãe foi a única que preservou a cabeleira da química danosa. Durante mais de sete décadas, seus cabelos eram negros, de comprimento médio. Quando os primeiros branquinhos despontaram, chegaram a incomodá-la: _Parece cabeça suja – ela dizia. Mas, acabou se habituando, deixou de se queixar. Mamãe era vaidosa, mas evitava salão de beleza. Idem acontece comigo. Ela mesma cuidava das madeixas jeitosas, nem lisas nem crespas. Para sorte dela, que odiava cabelos escorridos. Por isso mesmo, encrespava os desta rabiscadora, com permanente, feita de um liquido fedido com que se embebiam os papelotes (mechas de cabelo embrulhadas em papel de seda). Eu, tímida, nunca ousei dizer que abominava cabelos artificialmente encrespados. Ela somente soube disso quando eu já era burra velha. Coitadinha, eu não lhe deveria ter feito tal confissão. Os anos voaram. Como na vida tudo é cíclico, chegou o momento de papai me pedir para cuidar dos cabelos da sua querida Edy. Ele sabia que eu dava uma de cabeleireira, cortava o cabelo dos meus meninos, quando não podia pagar barbeiro. Aliás, eu, já adulta, cortava até os meus... Quanto malabarismo se faz nesta vida! Vejo papai a me pedir: _ A hora que você puder e sua mãe estiver disposta, dá para cortar o cabelo dela? Só que, por favor, não deixe a nuca de fora nem as orelhas. Eu o atendia sempre, sem indagar o porquê da recomendação. Era o gosto do Dan e dela também, pronto! Respeitar o modo de ser deles era o mínimo que eu, filha, poderia fazer. Afinal, difícil esperar que estranhos se preocupassem com as preferências dos meus queridos. Quando se é muito sensível, decora-se o perfil dos pais e se faz de tudo para vê-los felizes. Lamento as tantas vezes que, por razões íntimas, eu os tenha contrariado. Eu conseguia manter o corte do cabelo de mamãe arredondadinho, meio repicado nas laterais. Achava linda aquela cabecinha que foi se acinzentando lentamente. Então, ela se mantinha imóvel tal criança comportada. Eu evitava que as aparas a incomodassem. Então, punha num saquinho cada pouco cortado. Papai faleceu em 1998; mamãe, em 2009, aos 96 a. Por motivos alheios à minha vontade, nos últimos tempos dela, deixei de lhe fazer este pequeno mimo: cuidar de sua cabeça cinza. Então, sofri muito, pois certos profissionais mal orientados, embora carinhosos, deixavam-lhe nuca e orelhas aparentes. Pedia a Deus para que o cabelo dela crescesse logo e para que seu querido Dan, em morada distante, não tivesse nenhum dissabor. Se fosse só eu a sofrer, paciência, mas eu sabia que mamãe, ao se mirar no espelho, também ficava desgostosa. Isso me doía demais. Assim como me doía vê-la aflita com vento inoportuno a descabelá-la. Ela, uma santista, tinha pavor do ventinho da praia, não só porque sofria de enxaqueca, mas porque não tolerava cabelos desalinhados. Nem nela nem nos outros... _ Mãe querida, ainda sinto o perfume de suas cãs virgens... Agora, só na saudade. Maio/16 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br. Maio / 16.

Interrogação (Extra News - abril/16

Excepcionalmente, trato de assunto política e economia, mas já aviso: a contragosto. O Brasil atravessa fase preocupante. Os problemas se arrastam. Notícias desencontradas e polêmicas geram insegurança em todas as camadas sociais. Óbvio que os menos favorecidos deveriam ser o alvo de nossa atenção, não apenas diante da crise cuja solução ninguém imagina, mas, sobretudo, nas eleições. Nosso voto tinha que sopesar o bem maior, o da população carente. Infelizmente, pequena porcentagem do eleitorado tem esse desprendimento; a maioria vota de acordo com os próprios interesses. O empresariado tenta eleger candidatos que favoreçam a classe; o professorado, idem; o pobre, naqueles que lhe prometem mundos e fundos, se forem eleitos, quando não o “pagam” previamente. O voto-cabresto é prática comum. O empregado vota segundo a “ordem” do patrão. Caro leitor, se você trabalhou em seção eleitoral sabe do que estou falando. O espaço de que disponho aqui é pouco, para mencionar os absurdos observados nas mesas receptoras durante as eleições. Só vendo para crer. O resultado é previsível: representantes tiram vantagens de todo lado, ao invés de corresponderem aos anseios do povo. E a corrupção corre solta. Um porém: corrupção não é privilégio do Brasil; é mal que assola a maioria dos países. A diferença reside na punição desse crime abominável, prejuízo para toda a sociedade. Afinal, o dinheiro público sai dos nossos bolsos. Se há desvio de finalidade, quem perde? O povo. A meu ver, além da necessidade urgente de reforma da legislação brasileira, em vários campos, a educação é a base para mudar o país que chafurda na lama. Nossa mentalidade precisa mudar. A vida está cara? Está. Mas ninguém deixa de pintar o cabelo, fazer as unhas, queimar combustível nas estradas, curtir praia no feriadão. Imaginem uma quitanda e uma sorveteria, num dia de calor insuportável. Onde haverá mais consumidores? Sem medo de errar, respondo: fila na sorveteria. Ora, o preço de uma bola de sorvete – média de R$ 5,00 – daria para comprar um montão de bananas ou laranjas, certo? Para a saúde, o que é mais adequado: sorvete ou fruta? Portanto, a questão é esta: desde os primeiros passinhos do indivíduo, a educação precisa ser revista. Valores distorcidos levam à falsa cidadania. Ouço muito que fulano e beltrano querem mudar de país. Pois garanto que vão num voo e voltam no outro, se forem amantes de frutas , legumes e verduras deste solo gentil. Em qualquer esquina, temos o essencial para uma alimentação balanceada, desde que valorizemos o que nos faz bem. Porcariadas são supérfluos de fim de semana (antigamente, eram banquete de aniversário). Nossa fartura inexiste lá fora. Nos hotéis, bananas, se houver, são controladas. Vi isso, ao vivo e em cores, num hotel inglês: às escondidas, a garçonete ofereceu-me duas bananas. Esclareço que não lhe dei gorjeta nem antes nem depois. A corrupção, palavra da vez, começa dentro de casa.Somos todos corruptos. Os pais corrompem o filho, quando lhe dão trocadinhos porque limpou o cocô do cachorro. O mesmo, quando o presenteiam com carro, moto, bicicleta, porque entrou na faculdade, passou de ano. Ora, estudo é obrigação. “Presentear” por quê? Em eventos sociais, o conviva passa uns trocados para o garçom ser mais pródigo no serviço; nos bailes, as senhorinhas passam trocados aos free dancers contratados pelo clube, a fim de garantirem danças a mais; penetras também são corruptos, ou não? Enfim, leitor, é fácil extrair, do cotidiano, exemplos de corrupção. Bastam óculos honestos. Assim, é justo chamar de corrupção apenas o crime que acontece nos altos escalões? Estamos com um baita ponto de interrogação quanto aos rumos do amado Brasil. Façamos nossa parte. A faxina tem de começar já. Dentro da nossa casa. mineprado@gmail.com Abril/16

Obrigadão (Extra News - 11/5/16)

Obrigadão Uma postagem no FB diz que abril é o mês da gratidão. Ora, que eu saiba, devemos dar graças pelas benesses da vida, a todo instante, dia e noite. Será que isso já era e eu estou desatualizada? Pois aqui e agora tenho muito a agradecer a gentileza redobrada da bela loira que, recentemente, foi-me de grande auxílio no supermercado. Aliás, reconheci nela a professorinha de ginástica de anos atrás. Mas, com mil coisas na cabeça, não cheguei a indagar se ela se lembrava de mim e de nossas aulas. Num sábado, calorão de matar, fui ao Dia, à procura de leite em pó desnatado. Achei três latas. Peguei mais algumas coisas e logo estava na fila preferencial. Ah, na rápida andança, pedi a alguém o favor de pegar uma garrafa térmica no alto de uma prateleira. Eu até alcançaria, porém o risco de derrubá-la era grande, já que meus dedos pouco colaboram quando preciso segurar objetos maiores. Fiquei feliz por ter a humildade de pedir ajuda e, por sorte, para a pessoa certa – um cavalheiro. Logo fui para a fila preferencial. Na hora de ser atendida, esqueci os resmungos da minha coluna, a cada vez que eu mergulhava no carrinho para tirar as coisas e pô-las na esteira rolante. Então, notei a mesma moça loira (leia-se “senhora”) junto a mim no caixa. Para minha surpresa, ela passou a auxiliar-me naquela ginástica fora de hora. Num instante, minhas compras estavam registradas, pagas e amontoadas para serem embaladas. Esse supermercado não tem empacotador, um dos motivos de eu só pisar lá, quando não tenho alternativa. Por isso, a etapa seguinte: abrir sacolinhas plásticas e enfiar as compras nelas. Mais um sacrifício: briga dos meus dedos com as sacolinhas. Se estou apressada ou há alguém atrás de mim esperando que eu desocupe o espaço, esqueço a etiqueta, lambo o dedo, sem me importar com os olhares pasmos. Afinal, o cuspe e os dedos (sujos sabe Deus de quê) são meus. Pois, novamente, a moça loira estava ali, estendendo-me sacolinhas abertas. Ou seja, ela, muito ágil, já estava com as compras dela arrumadas, poderia ter ido embora, mas não. Preocupara-se comigo e ficara para me auxiliar. Quase não acreditei. Disse-lhe obrigada várias vezes. Cheguei à minha casa com o core satisfeito, mas me sentindo meio culpada. Por quê? No caixa, fizera mau juízo da moça, ao pensar que ela me ajudava, por estar impaciente com minha lerdeza para esvaziar o carrinho. Nada disso. Realmente ela havia sido solidária, sensibilizara-se com minhas limitações. Que coisa linda! Sim, linda, porque ajuda espontânea é raridade. O mundo anda tão acelerado e conectado que só se ouve falar da falta de tempo... Vai longe a época em que a rotina de qualquer mortal incluía dedicar um pouco de atenção ao outro, ainda que com pequenas gentilezas, como chamar o vizinho e passar-lhe, pelo muro, um pastel saído da frigideira, atravessar a rua e ajudar uma senhorinha com os pacotes, abrir a porta para deixar a dama passar. É, tudo passa... Por isso, eu, embora muitas vezes criticada por dizer “obrigada” pra cá e pra lá, deixo aqui um obrigadão pelas tantas gentilezas recebidas ao longo deste meu caminhar. E torço para que minha ex-professora de ginástica leia estes rabiscos, pois ela enfeitou aquele meu sábado. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Maio/16

quarta-feira, 9 de março de 2016

Cafezinho com a língua portuguesa

Cafezinho da tarde com amigos queridos rende papo proveitoso. Entre risos e polêmicas sem mesmice, temos assunto pra mais de metro. Num encontro recente, pusemos “a gente” na berlinda. _ Que negócio é este de “a gente” pra cá, a gente pra lá! Somos “nóóóós”_ proclama um deles, bastante politizado e inconformado não apenas com o panorama deste Brasil, mas também com a esculhambação do nosso idioma. Endosso o inconformismo dele. Quem lê jornais, assiste a noticiários, convive com pessoas de todo naipe, percebe que a língua culta é desprezada faz tempo. Falar bonito é exibição de letrado. “Gente”, no sentido de “pessoas”, não é pecado, faz parte do linguajar cotidiano. Porém, “a gente”, no sentido de “nós”, merece uma boa poda. Cansa engolir falação de políticos, repórteres, doutores, enfim, pessoas que são ou se julgam importantes, na base de “a gente sabe”, “a gente prefere”. É dose pra mamute, como dizia o inesquecível colega Joel Beotto, durante suas aulas de Direito Penal. E no embalo do nosso ouro verde, lembramos outros vícios de linguagem que dominam os diálogos Brasil afora: “achismo”, “gerundismo” e “irismo” (Mr. Google não os reconhece, tá?). _ Hoje todo mundo “acha que...”; ninguém pensa nada, acredita em nada _ reclama o politizado, olhar enviesado para nós outros, cada um a fazer mea culpa. Aproveito a brecha para uma aulinha e explico que gerundismo e irismo são influências do inglês: We are going to travel tomorrow, diz-se na terra do Tio Sam e alhures. O que soa melhor: “Nós estamos indo viajar amanhã.” ou “Nós viajaremos amanhã”? Deixemos de lado o futuro próximo _ ele a Deus pertence _ indicado na língua inglesa por to be going to e suas flexões. E mais: to go corresponde ao verbo de movimento “ir”. Quem vai, vai a algum lugar, certo? Um “Certíssimo, professora!” me faz interromper a aula que ninguém pediu: _ Desculpe, pessoal, um minutinho, vou à cozinha esquentar o café. _ “A gente” espera, “acho que” você sabe o caminho _ provoca meu amigo de cabelos nevados, mas que me divirto em dizer que são enevoados. Com café requentado, findamos nossa sessão de chatos de galocha ou, em bom português, implicantes. Se bem que certas implicâncias são úteis. Afinal, como conclui Ferreira Gullar, em “Ler e falar” (Folha de 28/2/16, Ilustrada - C 22): “O que importa é afirmar que falar e escrever corretamente não são esnobismos, mas necessidade da linguagem humana.” Depois dessa tarde, acentuei a autocrítica, policio minha fala, para driblar “a gente”. E mais, desisti de contar quantas vezes a expressão aparece nos noticiários. Nisso a Globo é campeã; ex.: “A gente agora vai falar com a Maju, pra saber como fica o tempo.” Seria mais elegante: “Agora (nós) falaremos com a Maju...”. Noite destas, na TV Cultura, uma geneticista preparadíssima, com respostas elucidativas sobre a longevidade com qualidade de vida, iniciou todas as respostas à repórter com “a gente”. Ela enterrou o “nós” durante o programa inteiro. Que cansaço! Em Coração Bobo,“A gente se ilude, dizendo: _Já não há mais coração”, certo, Alceu Valença? Pois é, caro leitor, nós nos iludimos, ao acreditar que muitas questões tenham conserto, inclusive os maus-tratos com nossa língua portuguesa. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Março/2016

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O aterrado atrelado

O aterrado atrelado Manhã tórrida combina com cervejinha gelada e um bom papo. Amigos de décadas reunidos no encontro de praxe, de onde saem refeitos para encarar a segundona. Esta provecta é intimada a se juntar ao grupo. _ Pera aí, vamos estender o tapete vermelho – avisa um deles, sujeito de bem com a vida (será máscara?), espirituoso, que adora me chamar de “minha presidenta”. Não me faço de rogada. Papo eclético faz um bem danado. E ali sai de tudo – desde prós e contras da tecnologia a ciúme razoável ou exacerbado. Delícia maior – nesse dia acabo como mediadora de dois guapos encanecidos. Interrompo a conversa para um telefonema, o que dá brecha para um deles pegar uma telinha e alienar-se do grupo. Logo leva uma carraspança: falta de educação, sô! Claro que o dito cujo não aceita a repreensão. Imagine, ele apenas dera parabéns a um amigo; tinha que fazer aquilo no ato, depois se esqueceria... Desculpa não aceita. E a polêmica cresce. De fato, nada, salvo uma emergência, deveria substituir o olho no olho. As geringonças tecnológicas tentam surrupiar nossa convivência, seja em família, seja entre amigos ou até entre estranhos que, lado a lado, permanecem mudos, enfiados naquelas intrusas, muitas vezes usando fones de ouvido que indicam claramente: não quero papo. _ Ah, mas estamos no século 21. Não dá para ficar desconectado. Olha aí a globalização, a facilidade de contato instantâneo, meus parabéns já estão do outro lado do mundo – argumenta o repreendido. Não perco a chance de demonstrar as atitudes paradoxais do gabola que, por aderir às maquininhas, se acha no século 21, mas não é livre para um alô às amigas, quando está acompanhado. Aliás, sequer olha para os lados. Agora nosso tema é o ciúme... O que é esse bendito que tanto atrapalha os relacionamentos? É natural, é doença, é próprio de quem ama? E por ai vai. Digo que o ciúme entre casais pode ser justificado, se um dos cônjuges apronta muito, gerando a desconfiança, o que facilmente decreta o fim de qualquer relação. Perdida a confiança, o melhor vaso de cristal já era. O coitado que está na berlinda olha pra mim e sai-se com esta: _ Vai ver eu estava com a cabeça no ar, se alguma vez não cumprimentei você. O outro rebate em cima, fazendo todo mundo gargalhar: _ No “ar”, não. Você estava é “aterrado”! A coisa ferve, o “aéreo” cora. E eu completo: _ Pois é, você se gaba tanto de estar no século 21, globalizadinho, mas vive muito mais do que “aterrado”. Dependendo da ocasião, fica é “atrelado”, como um cãozinho na coleira, morrendo de medo da dona. Isso também é coisa de século 21? Não sei onde fui buscar essa fala ousada. Talvez a culpa seja dos dois dedos de cerveja que os amigos serviram a esta escriba, para brindar a velha amizade.Tim-tim. Maria Inês de Araújo Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos e Minês”:minesprado.blogspot.com.br Fev/16

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Não se deve dar esmola

Não se deve dar esmola Chego do supermercado, descarrego o carro, tiro tudo das sacolinhas, guardo. Agora mereço um cafezinho com “airosa”, aquela broinha de fubá , levíssima, irresistível. Ouço campainha na casa ao lado. Ou será na minha? Espio, ninguém. Mas logo o interfone toca. Olho pela janela: uma negra esquálida, desgrenhada, sorriso nos lábios, pede desculpas por amolar. Desfia a história do leite que o sobrinho necessita, mas que o governo não entrega no postinho, da presidenta que...sabe como é... Enfim, é um SOS. Pergunto-lhe se aceitaria frutas. Não, já tem o suficiente para os sobrinhos, o básico, arroz, feijão, açúcar. Precisa mesmo é de comprar o leite especial (esqueci o nome). Peço-lhe para esperar. Raciocino. Eu acabara de pagar os tubos por uma caixinha à toa de uvas. Sem falar no sabão em pó ou líquido (do jeito que o preço disparou, logo a máquina de lavar ficará encostada). Lá fora a moça cantarola, arriada à beira do portão. Decido. Pego o trocado que tenho, envergonhada da mísera quantia que mal paga meia caixinha de uvas. A consciência machuca. Vou ao portão, estendo o trocado à moça (perguntei o nome dela por perguntar, já esqueci; onde morava? Jardim Resedás). Perguntas inúteis, uma forma de demonstrar interesse naquilo que foge à minha alçada. Foge? Será? Ela comenta que roupas usadas,, sapatos etc. também servem para vender no brechó. Explico que dei algumas para as vitimas da enchente em Águas da Prata (3/1/16). Ela, bastante consciente, diz que fiz certo, que aquela gente também precisava de ajuda. E, com um “muito obrigada, minha flor”, atravessa a rua para esmolar mais. Volto ao meu café já frio, partida em pedaços, como que culpada pela diferença estrondosa entre a minha vida e a da pobre mulher. E mais... Há poucas horas eu saíra de casa, sentindo-me esquecida neste mundo. Só que a ida às compras mudara tudo. No supermercado, um homenzarrão gentil me abrira a porta do elevador e perguntara sobre minhas caminhadas. Respondi qualquer coisa sobre a SES e a chuva, dei-lhe um “até logo” e fui direto pegar pó de café, onde uma moça espanava prateleiras, já comemorando a folga do domingo. Pois ela (que vexame, eu não sabia com quem estava falando!) também quis saber das caminhadas. Só aí me dei conta de como as pessoas prestam atenção na gente. Ridícula minha ideia de estar esquecida do mundo. Batemos o maior papo, eu e ela, representante de café. Muito sensível, falou-me da reflexão que fizera, ao ver o rio Jaguari Mirim cheio – “um rio é igualzinho à nossa vida: vai, vai, encontra pedras no caminho como aquelas que não sabemos compreender...”. Completei que nossa vida é um trem sem volta, historinha batida essa! Nossa conversa foi das caminhadas aos meus rabiscos, antes passando pelo INCRA (então, eu não assistira à reportagem na Globo?). Ao final, ela me disse que adorara conversar comigo. “Por que nunca me parou na SES?” – indaguei. Por minha vez, confidenciei que ela era a primeira pessoa com quem eu falava naquele sábado chuvoso. Espero que a esquálida pedinte faça bom uso do trocado que lhe dei, embora, decididamente, não se deva dar esmola. E também não se deva chorar de barriga cheia, nem porque estamos a falar com as paredes nem porque o telefone não toca. Somos ricos demais neste mundo de desigualdades que já nasceram com a Criação. 09/01/16 Maria Inês de Araújo Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Prata Gloriosa (Edgar Prado Panzoldo - 5º lugar - Concurso Ademaro Prézia - 2006)

Prata gloriosa Autor: Edgar Prado Panzoldo (santista) Quando criança costumava viajar A um lugar esplendoroso, Cuja lembrança me faz arrepiar, Porque era tão gostoso. Pra lá tenho vontade de voltar: Localizada nas montanhas sagradas, Aquecida pelo sol divino, Abençoada pelas luas encantadas, Desperta em mim o menino... Nas madrugadas frias, ia à padaria, Esperar pelo pão fresquinho Feito pelo experiente padeiro, Com tanto carinho, A um povo simples, hospitaleiro. Detentora de água incorrupta, Tornou-se famosa Porque é prata absoluta, Prata gloriosa. A Pensão Zago, o antigo Cassino, O Hotel São Paulo, Os passeios de charrete, As fazendas, os ranchos e sítios, A pamonha do bosque, A comida caseira, As fogueiras no Cristo, As noites estreladas, Os deliciosos namoros, O concerto dos pássaros, O café da manhã no Ideal, A longevidade dos pratenses, A tranquilidade silenciosa, A temperatura europeia, A piscina do Boi, As aventuras a cavalo... Ah, quem me dera voltar no tempo, E abraçar apertado O passado de Águas da Prata... A ti, Prata querida, Reverencio nesta poesia Pois de ti, em minha vida, Resta saudosa alegria! ******** 5º lugar – 1º Concurso de Poesia, Biografia, Conto e Crõnica – prêmio Ademaro Prezia - 2006