quarta-feira, 25 de março de 2015

A ficha ainda não caiu (Extranews: 25/3/2015)

A ficha ainda não caiu Expressão que vive no cotidiano, quando há morte por causa não natural, como violência, suicídio, acidente, “a ficha ainda não caiu”, dita por um familiar ou amigo próximo do morto, significa que a realidade ainda não foi digerida, assimilada. Mas será que, referir-se desse modo à perda irreparável, não é banalizá-la demais? Se bem que, hoje, é comum a notícia de morte estúpida ser veiculada, discretamente, como se sua importância fosse nenhuma. Afinal, é “só” mais alguém que se vai. Só morre quem, está vivo, não é? Depois de certo alarido e especulações, a vida continua. A tragédia vai pra gaveta, a solidariedade escasseia e ponto final. O mesmo acontece com boa parcela dos inquéritos e processos decorrentes desses casos. Semana passada, fiquei muito triste com o suicídio de três jovens, por enforcamento – um, em São João da Boa Vista, e os outros, em cidades vizinhas. Com a vida toda em aberto, por que fugiram dela? Insegurança, desamor, drogas ou, como se levantou a hipótese, influência de algum jogo virtual? Seja lá o que for, é extremamente grave a perda de botões mal desabrochados. A comunidade (fala-se tanto nela!) deveria mobilizar-se, para prevenir vidas ceifadas assim. Talvez falte diálogo nas famílias, talvez a atenção esteja desviado para o afã de acumular bens materiais, em detrimento de cultivar confiança e amor entre pais e filhos. Não sei. A propósito, um funcionário do cemitério desta terrinha desabafa: “Falta vara de marmelo pra essa criançada. Hoje, ninguém pode com os filhos: trancam-se no quarto, com as telinhas, fazendo sabe-se deus o quê, e ninguém tira eles de lá. Dá nisso! No meu tempo, a vara de marmelo funcionava em casa e na escola. Hoje, é a professora que não presta, a escola que é ruim. Qualquer coisa é Conselho Tutelar! Tem que baixar a maioridade penal para 12 anos; fez coisa errada, vai pra cadeia e pronto!” A coisa está feia: uns jovens tiram a própria vida, outros, perdem-na bestamente. Há dias, a Folha de São Paulo, trouxe notícia escondida no Cotidiano: uma idosa sentada à porta e um garoto que empinava pipa foram vítimas de balsa perdidas, numa zona do Rio, onde há conflitos diários entre traficantes e policiais. Fatos como esse se tornaram “arroz com feijão”, mal são notícia na imprensa e na TV, pois não vendem jornal nem vitaminam Ibope. Por outro lado, é estranho que condenados à morte causem manifestações diversas, tanto nas pessoas como nos meios de comunicação: o fato de um brasileiro estar à espera de execução na Indonésia merece destaque frequente, nos jornais e nas conversas. Em compensação, mortos por bala perdida podem se multiplicar, que mal atraem repórteres ou cutucam a consciência alheia. Já a execução de um brasileiro sempre é manchete, pois retrata a impotência política, diante da soberania de outro país. Em qualquer morte trágica, é comum repórteres idiotizados indagarem às pessoas enlutadas: “Como se sente, diante da perda de x?” E lá vem a resposta: ”A ficha ainda não caiu.” Na verdade, a indagação é imprópria, pois óbvio que vidas perdidas causam muita dor; não menos imprópria a resposta. Há dores que nenhuma palavra explica. Que a ficha não caia, quando se obtém reprovação no vestibular ou se perde o voo, tudo bem. Mas, em relação ao vazio e à dor deixados pela morte, a expressão é infeliz. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

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