sábado, 4 de outubro de 2014

Soberba inútil

O jardim amanhece triste. Num canto sob o buxinho, cinzenta, inerte, a ave abatida. Pezinhos ressecados indicam que já deve estar ali há mais de um dia. Quis jazer discreta, sem alarido, escondida no sofrimento. Decido que não mexerei nela. Mais tarde, provavelmente na manhã seguinte. É algo bem desagradável ter que removê-la para o lixo. Assim como é desagradável ter que fazer visitas a doentes, comparecer a funerais e outras atividades inerentes à vida em sociedade. A gente não foge de certas obrigações dolorosas, mas bem que gostaria. Como preferiria ignorar a pomba, sim, é uma pomba morta no meu jardim. E tenho que dar jeito nela, pois logo o mau cheiro empesteará a casa e a vizinhança. A manhã seguinte chega. Penso que, por mágica, a pomba não esteja mais lá. Um gato ou outro animal bem pode ter me livrado daquele desafio. Mas, não. Os despojos da ave me aguardam. Mãos à obra, pois não há ninguém a quem eu possa delegar a tarefa ingrata. Pego um rodo e um saco de lixo e enfrento o inevitável. Com jeito, trabalho com o rodo, de tal maneira que emborque a pobrezinha diretamente no saco. Mal mexo nela e o fedor invade minhas narinas. Prendo a respiração. Tenho a sorte de boa pontaria. Acerto o manejo do rodo de tal maneira que, num segundo, os restos mortais da coitadinha, na companhia dos que a fazem de banquete, já estão ensacados. Dou um nó bem apertado na boca do saco e levo-o à lixeira. O rastro da putrefação me segue. Acabo de constatar o óbvio, ou seja, uma pequena amostra do fim de qualquer animal morto: putrefato, sendo consumido por vermes, a não ser que seja cremado. Meu pensamento dá um salto: pula da pomba para a literatura. “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” – Machado de Assis assim destinou seu Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Dedicatória singular essa. Se foi ato de humildade, se foi sadomasoquismo, se foi marketing, só Machado sabe. Parodiando o fundador da Academia Brasileira de Letras (1897), ensaio a dedicatória de um pretenso livro meu: “À labareda que primeiro lamber as carnes frias do meu cadáver, dedico estes rabiscos.” E já adianto aos leitores que não se trata de sadomasoquismo nem pieguice. É, sim, soberba inútil. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Out./14

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