sábado, 27 de setembro de 2014
Agora Inês é morta
Agora Inês é morta
Meio da tarde. Ela olha a louça que pede cuidados faz um tempão. Aliás, louça não, um jogo de cristais, presente de casamento. Então, quanta água corrida por debaixo da ponte! Os tios queridos que lhe deram o presentão faleceram há décadas, mas os benditos cristais continuam donos do pedaço e exigem limpeza. Cerca de oitenta peças ocupam metade do armário da copa.
Vamos, coragem, mulher... Mãos à obra. Que adianta postergar uma tarefa que é só sua? Bem verdade que, na última limpeza, quebrou-se um cálice, pois a fragilidade dessas coisinhas é absurda. Mal dá pra acreditar que se invente algo que se parte sob a pressão mínima dos dedos, de tão fraquinho.
Escancara as portas do armário e enfrenta o desafio. Primeiro tira de lá peça por peça, coloca na pia com o maior cuidado. Haja pia! Envergonha-se do pó acumulado: cada peça extraída deixa uma rodinha perfeita no espaço que ocupava. Depois de tirar tudo, mira as prateleiras estampadas pelo pó. Pano embebido com vinagre, já. E inicia um ritual de esfrega/ enxagua pano sem fim. Em cima do armário deve estar um horror. Pensa na escada de cinco degraus bem à mão. Mas desiste, pois, se cair e se arrebentar, ela “vai” e aquelas coisinhas cheias de si ficam. Pega um rodo, enrola o pano úmido, passa sobre o armário, livrando-o da sujeira que só ela sabe e ninguém vê. Dona de casa é tola mesmo.
Bem, agora é lavar as delicadezas enjoadas, embora “lindas de viver”, como diria a impagável Hebe Camargo. Sabe que elas não aguentam bucha nem dedos pesados. O jeito é mergulhá-las, aos poucos, na pia cheia d’água e detergente. Depois, enxaguar uma a uma, com toda a calma do mundo, e emborcá-las sobre toalhas limpas, para secarem livres de esbarrões.
Agora é esperar. Aquilo tudo só pode voltar pro lugar bem mais tarde. Por enquanto basta. Ela quer ar puro.
O relógio voa. Cai a noite. Hora da Ave Maria. Balbuciando a oração, ela vai conferir a caixa do correio e acender as luzes do jardim. Ao longe, a serra da Mantiqueira já boceja. Lembra-se das palavras do irmão: “Sente-se nesta varanda e olhe para aquela serra o quanto puder.” Judiação ter perdido o crepúsculo por causa de coisas materiais e, o pior, supérfluas.
Ops, nada a ver jogar a culpa nelas. Culpada ela por ainda ter um monte de vidro intacto e que já virou o século. Por que não usar aquelas fracotinhas no dia a dia? Por que poupá-las das mãos alheias, mais desastradas do que as dela? Vê a cena do neto, dez anos atrás: o pequeno alcança um daqueles copos finíssimos, esbarra-o na torneira do filtro e “plim” - o primeiro dano na coleção... Vê-se, contida, advertindo-o: “Querido, esse copo não pode pegar...” Que avó-dose! O coitadinho mal chegara à fase dos porquês...
Hoje, recrimina-se. Ela, a família, os amigos, todo mundo deveria usar aqueles cristais à vontade, pois dão sabor especial a qualquer bebida, até à água. Além disso, com o uso, boa parte deles já seria pó. Então, sobraria tempo para os reais prazeres da vida, como curtir o adormecer da Mantiqueira. Tempu persu é tempu persu. Agora Inês é morta. Aprenda, mulher!
minesprado@gmail.com
“Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br
Set./14
Publicação em 27/9/14 Edição Extra
sábado, 13 de setembro de 2014
Presidente ou presidenta?
Presidente ou presidenta?
Esse assunto já se esgotou, porém Ferreira Gullar, em ‘Quem manda sou eu’ (Folha, E10, de 7/9/14), mostra-se fulo da vida com a imposição da presidente Dilma, que quer ser chamada de “presidenta” e que, em 3 de abril de 2012, assinou a Lei n º 12.605/12, obrigando o país inteiro a ‘submeter-se a uma tolice’. De acordo com a referida lei, “As instituições de ensino público e privado expedirão diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada.”
Em face da presidenta mandona, Gullar descarrega seu fel, concluindo que teremos ‘gerenta’, ‘assistenta’ etc. Ora, não é bem assim.
Concordo que a expressão “presidenta” é horrorosa. Tenho um amigo, colaborador deste Extra que, vez ou outra, chama-me de “presidenta”. A brincadeira e também nossa boa amizade decorrem de eu ter sido presidente da seção eleitoral em que ele era mesário. Acredito que nada tem a ver com ser mandona ou algo assim. Entretanto, sei que sou exigente, porque levo a sério o que é sério. Afinal, ter que aturar molecas iniciantes, que mal sabiam localizar eleitores na lista de presença, mas sabiam muito bem fazer graças, tirando os sapatos em plena votação, era demais pra mim. Ser “presidenta” de brincadeira vá lá, aceito e me divirto.
Eu, como a maioria dos brasileiros, não consigo usar o termo numa boa. E Gullar idem. Porém, isso não nos autoriza a induzir o leitor a erro: segundo a Academia Brasileira de Letras, os vocábulos “presidente” e “presidenta”, aplicados ao gênero feminino, são equivalentes. Dicionários confiáveis, como o Houaiss – tenho vários, um deles de 1980 - ratificam tal ensinamento. Esdrúxula ou não, “presidenta” é palavra inserida no vocabulário da norma culta.
Cansei de responder a e-mails sobre “presidenta”, lebre que se levantou e não se cansa jamais. Ou melhor, só cairá no limbo, quando tivermos mudança na presidência. Mas, realmente, cansa minha beleza, a insistência de certas pessoas sarristas que, num péssimo exemplo aos mais novos, emitem e/ou transmitem matérias desrespeitosas em relação a autoridades constituídas, não importa se estas são nota dez ou zero.
Gosto não se discute. Quem sentir os ouvidos ofendidos tampe-os. E, claro, opte por chamar de “presidente” qualquer mulher que exerça função de presidência. Fácil.
Hoje, 8 de setembro de 2014, publiquei carta no Painel do Leitor da Folha, com um elogio ao Ferreira Gullar, acompanhado de puxão de orelhas. O artífice da palavra tem a obrigação de partilhar conhecimentos até mesmo na discordância. Omitir informação pode induzir o leitor à propagação do equívoco. Portanto, sejamos responsáveis.
E falando em responsabilidade, sou a favor do voto facultativo, demonstração espontânea de cidadania. Sendo obrigatório, submeti-me a ele desde os dezoito anos, mesmo que visse poucas opções de candidatos com “C”. Nestas eleições, em razão da idade, pretendo fazer jus à prerrogativa de não votar. Confesso que torço por mudanças no nosso sistema político: redução de partidos, extinção da “profissão” de vereador, deputado, senador, presidente, proibição de reeleição e outras.
minesprado@gmail.com
“Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br
Publicação no Extra de 13/9/14
sábado, 6 de setembro de 2014
As incongruências assustam
As incongruências assustam
A mídia nos traz maravilhas e lixos, ao mesmo tempo. Para conviver com tudo que nos chega, diariamente, pela TV, jornais, e-mails, redes sociais, sem perder o equilíbrio, é preciso muito malabarismo e senso de humor.
Basta assistir a um noticiário televisivo, para perceber o quanto de animalidade está à solta mundo afora. Esta semana o mundo, estupefato, assistiu ao vídeo em que um jornalista americano está preste a ser decapitado por suposto membro do Estado Islâmico. Na mesma ocasião, mostrou-se o êxito da captura de foragido da justiça, o ex-médico Roger Abdelmassih, sanjoanense, para vergonha nossa. Mulheres enganadas, molestadas e estupradas por ele comemoram a prisão, embora haja recursos interpostos à espera de apreciação do judiciário. No aeroporto de Congonhas, onde desembarcou, vindo do Paraguai, foi submetido a toda sorte de xingamentos e imprecações, como parte do revide pelos males que causou.
Se fosse registrar aqui todos os fatos escabrosos, fruto da conduta animalesca do homem, faltar-me-ia estômago e ao leitor também, para digerir tanto lixo.
Em compensação, as belezas captadas no dia a dia são refrigério à alma. Ainda ontem, ao acessar um PPS, fui às lágrimas: imagens espetaculares – flores em profusão, multicoloridas, em especial, cerejeiras em flor, tendo como fundo musical a Serenata de Franz Schubert. Fiquei em estado de graça, flutuando, diante de tamanha maravilha.
Numa das imagens, um pavão belíssimo, arte da mãe-natureza, concorre com as flores. Quase pausei a exibição, para contar as cores que a linda ave carrega na cauda aberta em leque. Imponência e delicadeza estacionaram ali, em dose dupla, numa combinação perfeita.
Pena que somos metralhados com o bem e o mal, numa velocidade impossível de acompanhar, sem sairmos zonzos. As incongruências da vida assustam. Como pode o ser humano subir tão alto, capaz de façanhas espetaculares, presenteado ainda pela Natureza em festa, e, ao mesmo tempo, decair, em fração de segundos, como autor de barbaridades inconfessáveis?
Pessoalmente, não consigo me imaginar como uma gangorra maluca, com bem e mal refestelados em cada extremidade. Não dá! Mas noto que essa visão impossível de mim mesma parece normal para muita gente.
No caso do médico, por exemplo, supondo-se que seja culpado das acusações que pesam sobre ele, como pode levar vida de rei, exibindo à sociedade estrangeira e à própria família um retrato de pai; marido extremoso? Pai que leva filhos à escola, que passeia, cultiva pomares etc. Pode? Pode, sim. Que será que esse projeto de homem tem no lugar dos miolos?
No caso do degolador do americano, será que, terminado o “serviço”, em que ostenta onipotência, consegue sentar-se à mesa para um banquete? Será que o cheiro de sangue humano lhe atiça o apetite? Será que é pai? Será que sua cabeça vale mais do que a que ele golpeia? Será que uma lavagem cerebral o tornou autômato, insensível, incapaz do equilíbrio razão/ emoção?
Se, no cotidiano, eu pudesse filtrar o conteúdo que vai chegar aos meus sentidos seria ótimo. Cresci, ciente da existência do bem e do mal. Mas jamais imaginei um mundo assim tão louco, em que flores e pássaros me encantam, ao mesmo tempo em que facas me estraçalham ...
minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.
Nossa pele de bebê
Nossa pele de bebê
Você entra apressadamente num banheiro, faz suas necessidades e... Caramba! Cadê o papel?
Essa é uma situação corriqueira e atemporal. Viramos o século, dependendo do papel higiênico a nossa disposição nos sanitários da vida - em casa, avião, hotel, casa alheia ou até no mato.
Há quem faça questão absoluta de ele ser de certa marca, mais macio, perfumado ou neutro, folha simples ou dupla, vinte ou trinta metros etc. Mas o que importa mesmo é sabê-lo ali, ao nosso alcance, na hora certa, não é mesmo?
Interessante é que ele tem mil utilidades, além da básica – limpar/secar nossas partes íntimas. Algumas delas aqui vão. Cortou-se, ao fazer a barba ou depilar-se? Um pedacinho do santo papel colocado sobre o corte estanca o sangue na hora. O batom está muito forte? Aperta-se um pedacinho do papel entre os lábios e pronto – a boca fica mais discreta, sem ar de palhaça. Problemas com frieiras resultam, quase sempre, de enxugar mal o vão entre os dedos. Fazer um rolinho de papel e passar ali resolve essa chatice. Você, homem, teve sua carteira roubada, pois ela estava dando sopa no bolso traseiro da calça? Solução: dobre um tanto de papel e ponha no bolso de trás; guarde a carteira noutro lugar e, se houver uma próxima vez, divirta-se vendo o larápio fulo da vida, decepcionado, jogando pra cima de você o chumaço de papel. A janela do quarto perturba seu sono, chacoalha, porque foi mal colocada e o vento não quer saber do seu grilo com o barulho que deixa você insone? Amontoe um tanto de papel e enfie no vão entre a janela e a vidraça: que paz! E, se justo na hora do nº 2, vier uma poesia supimpa, não hesite, puxe uma folha do rolo e lasque ali seus versos, antes que fujam e você se lamente por desperdiçar seu lirismo na privada.
Depoimento do papel higiênico: ‘Reconheço que sou indispensável na vida de todo mortal. Porém, pra sair da monotonia, pinto e bordo. Vira e mexe, escapo do pauzinho em que fico encaixado o dia todo e danço e rolo pelo chão limpo ou sujo, não importa. Ai que liberdade gostosa fazer um pouco de alongamento, à imitação dos meus usuários! Aí, se uma dona toda metida precisa de mim, divirto-me a valer: mãos bem cuidadas, pontinhas de dedos com medo de contaminação, querendo me agarrar - hilária essa cena. Outro lance divertido é quando meu rolo vai começar a ser usado e um ou uma infeliz morrendo de pressa não consegue achar meu início. Puxa-me, estraçalha-me, nada de acertar meu picote. Se eu estiver num daqueles suportes gigantes, próprios de rodoviárias e shoppings, aí a coisa engrossa, pois sumo lá na escuridão do troço e dali não saio, dali ninguém me tira. Vida boa a minha. Só odeio servir de banquete pra ratos. Vocês precisavam ver a cara dum fazendeiro cuca-fresca, ao me pôr na mão duma hóspede e só então notar que eu estava todo roído... ’
Pois é, viramos o século, mas o papel higiênico continua praticamente sem novidades. A grande diferença é que substituiu o jornal... Quem frequentou casas antigas, de gente mais simples, deve ter se limpado/enxugado com jornal cortado em quadrados pendurados num gancho de arame... Era bem desconfortável e anti-higiênico, só que noutros tempos ninguém pensava que a tinta e a aspereza do jornal faziam mal pra nossa pele de bebê, vero?
minesprado@gmail.com
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Set./14TC
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