sábado, 28 de junho de 2014
Saõ Pedro único
São Pedro único
_Amanhã preciso ir a Monte Santo. Minha mãe faria cem anos. Vou levar-lhe flores. Você vai comigo? – pede o homem.
_ Claro, será gostoso, ainda mais que o tempo está ótimo – retruca a moça.
_ Ah, esqueci, amanhã não posso, marquei hora com a imobiliária à tarde, lamenta-se ele.
_ E daí? Bem, só você pode saber o que é mais importante pra você – pondera a moça, clara, mas sutil...
Seria ele o mesmo homem que, na véspera, recordara o tempo de menino, soltando pião para lá e para cá, divertindo-se com as proezas para as quais ainda levava jeito? O que a vida fazia com as pessoas? Para ele o pião parecia um velho companheiro, mas, paradoxalmente, a importância de certas coisas estava meio embaralhada. O mundo adulto é bem complicado.
_ É, são coisas diferentes _ ele quase engole as palavras, despedindo-se _ Qualquer coisa eu ligo.
Dali a quinze minutos o telefone toca:
_ Oi, resolvi, amanhã vamos a Monte Santo. Passo aí às 9h, ok?
Às 9h?? Mas já são 3h da manhã!
_ Ah, não pode ser às 10h?... _ pede a moça, com jeitinho.
_ Claro, dorminhoca, uma hora a mais, uma a menos, se não der pra ir à imobiliária na volta, paciência.
Finalmente, seria uma boa noite ,ou melhor, uma boa madrugada para ambos, com muitos sonhos, cada um na sua casa. Nenhuma pendência.
O dia de são Pedro, 29 de junho, amanhece espetacular, céu azul, um verdadeiro convite para sair estrada afora. E lá vai o par, feliz da vida.
O homem recorda. Durante anos preparara a festa na roça, festança dupla: para são Pedro e para a querida mãe, mesmo depois que ela se fora. Bandeirolas, tochas, quentão, tudo de gostoso, sem faltar o sanfoneiro. Mas ultimamente desanimara, não sabia o porquê. Fazia anos que a data passava em branco.
Uma curva da estrada revela Monte Santo de Minas. Seguem direto para o cemitério municipal. A dificuldade de sempre para achar a campa da família, entre as centenas com nomes italianos, numa demonstração do tanto de imigrantes que se fixaram na região. Ela o ajuda, já o tinha acompanhado uma vez até lá.
_ É esta aqui _ ela aponta.
No céu e na terra acontece um são Pedro único. Nas alturas, dona Maria, sorridente, recebe o perfume das flores brancas que o filho lhe traz. Ele senta-se sobre a lápide. Lágrimas discretas rolam, enquanto conversa com o Além. A moça assiste ao momento que não se pode dividir com ninguém – o da dor que não tem idade, a dor da orfandade.
Deixam o cemitério renovados. Ele, agradecido por participar do centenário de sua dona Maria. Quem sabe as flores brancas fossem pipocas lá em cima...
Ela, feliz por estarem juntos naquela hora tão especial e que jamais se repetiria, salvo em outros montes...
A fome bate. Param o carro. Enquanto procuram um lugarzinho para comer, ele vai assinalando a igreja em que fora batizado, a casa em que a família crescera, a rua principal. Vê gente que talvez seja do tempo dele. Decide conferir. A moça afasta-se, sob o pretexto de comprar uns cartões.
Ele volta animado. Acaba de conversar com uma velha conhecida.
Logo descobrem uma casa de massas onde o cardápio é promissor. Encomendam meio quilo de canelone. Uma mesinha é improvisada. Em poucos minutos, deliciam-se com o melhor canelone de ricota de suas vidas.Há coisas de que se tem absoluta certeza...
Um senhor meio alquebrado entra na rotisserie. Será algum amigo dele ou de seu falecido pai? O senhor indaga quem viera visitar a mãe no cemitério local. Em cidade pequena as notícias correm. A conversa se anima, descobrem que tinham sido parceiros de futebol, e pronto. Volta-se à realidade, já que é melhor falar da Copa do Mundo do que descobrir os tantos que já se foram daquele timaço da infância... Despedem-se, com a promessa de futuros encontros, aqueles que a gente promete, mas raramente cumpre.
Sem pressa, com a alma leve, o homem e a moça pegam a estrada de volta.
São Pedro deve ter ficado alegre com essa comemoração excepcional e cheia de significados. Um dia único em Monte Santo de Minas, do qual resta a saudade.
minesprado@gmail.com
“Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br
publicação no Edição Extra de 28/6/14 (redigido em 2003)
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