domingo, 22 de junho de 2014

Jogo de empurra

Jogo de empurra Certas características do povo brasileiro ganharam fama e deitaram na cama. Dentre elas, a eterna mania de jogar a culpa no outro, por qualquer coisa errada que aconteça, seja na família, no grupo de amigos, na vizinhança, no trabalho, no hospital, na escola ou no serviço público. * _ Maricota, o arroz tá empapado – reclama o “patrão”. _ Ah, sabe por quê? Pra variar Nica veio pedir açúcar emprestado. Você conhece bem a Nica - fala mais que a boca. E o arroz lá no fogo... * _ Mãe, olhe, já disse: não fui eu que joguei a toalha no chão, foi o Pipoca que usou o banheiro. Pô, mãe, tudo nesta casa é minha culpa! Já tô... * _ Zé, pelo amor de Deus, cortaram a luz! Quantas vezes já lhe implorei que pague as contas em dia! Tenho uma pilha de roupa pra passar! – choraminga a mulher ao celular. _ Caramba, Dilminha, lá vem você com suas acusações! Eu já lhe expliquei que a nova secretária é desencanada: confere a agenda para “ontem”. Dá nisso. Olhe, mando pagar já, viu? Fica calma. Vai passar minhas camisas na vizinha... * _ Menino impossível! Já falei pra parar de jogar bola na calçada! Dona Maria veio, novamente, reclamar das boladas nas plantas dela. _ Mãe do céu, não fui eu, foi o Zezinho, aquele perna de pau não acerta uma. * _ Senhores Vereadores, a novela do IML é desmoralizante. Cada mês que comparecemos à Câmara ouvimos uma desculpa: ora é a reforma que ainda não acabou, ora é o concurso para médicos legistas que não aconteceu, ora são os legistas que se aposentaram ou os novos que pediram transferência pra Caixa-Prego (tecendo pauzinhos, claro!), ora é o prefeito que não atende aos edis, para a reunião solicitada, ora é por culpa exclusiva do Estado, pois o Município nada tem a ver com a questão. Basta, senhores! Se o IML não funcionar incontinenti, faremos greve de cidadania! No cotidiano convivemos com o “tirar o corpo fora”, em todo lugar, inclusive escolas, pronto socorros e hospitais. É o papel de bala jogado “pelo outro”, no chão da sala de aula; é o médico que cancela as consultas do dia, por conta de uma emergência (“emergência” é sinônimo de salvadora da pátria), e por aí vai. Nos meses que antecederam a Copa do Mundo, as desculpas e culpas do outro choveram na mídia escrita e falada. Obras inacabadas, acidentes de trabalho nas mesmas, enfim, um quadro caótico por culpa da empreiteira, da chuva, do vento, do cisco no olho do funcionário, de qualquer coisa, menos dos responsáveis. Michel Kepp, americano radicado no Brasil, jornalista, autor de “Tropeços nos Trópicos”, Editora Record, 2011, passeando pelas contradições culturais entre Estados Unidos e Brasil, fala do “jeitinho” brasileiro que contamina a maioria do nosso povo. Eu diria que é mal sem remédio, tão enrustido na sociedade que não surpreende. E diria também que o “jogo de empurra”, ou seja, não assumir responsabilidades, mas transferi-las a terceiros, faz parte desse “jeitinho” que, desconfio, é genético. Nota-se que, em algumas famílias, jogar a culpa pra cima do outro é absolutamente normal no convívio entre pais e filhos, gerando um clima de acusações mútuas insuportável: a criança vai à escola sem uniforme porque “mamãe não lavou a blusa”; a mãe não lavou a blusa porque, na véspera, ao chegar da escola, a criança não trocou de roupa – foi direto pra casa do amigo. Quem já não ouviu essa ciranda? Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 21/6/14

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