sábado, 15 de março de 2014

Livros e seu destino

Livros e seu destino Certa vez, minha casa amanheceu pelada de livros. Fiquei chocada, pois não vivo sem eles. Alguém, ao se apartar de mim, levara todos, até os que me serviam de ferramenta de trabalho nas aulas particulares de inglês/ português. Inconformada, recorri ao juízo de família. Foram-me restituídos alguns gatos pingados. Que sufoco! Mas logo superei essa fase. Deixei o mar lá longe e parti para vida nova em ares sanjoanenses. Voltei a estudar e, aos poucos, formei modesta biblioteca, com contribuição da família, sobretudo de uma tia e mestra, que me cedeu obras de literatura e gramática, tudo bem cuidado, como é próprio de quem ama os livros. Após essa ajuda valiosa, passei a lecionar em escolas. Então, as editoras enchiam minha estante, com dicionários, gramáticas e paradidáticos. A biblioteca se ampliou. Tinha à disposição farto material para pesquisas e preparo de aulas que eu dava para vários níveis. Mais tarde, já assistente na faculdade, sentia-me respaldada com tantas riquezas à mão. Anos depois, a vida me mostraria que a justiça se faz aqui mesmo. Por morte daquele que me deixara a pé de livros, eles retornaram a mim, de um jeito inimaginável. O estopim foi um telefonema desesperado de amigos de Santos. Por atenderem a um pedido de favor, havia dois anos que eles estavam com uma bomba nas mãos: cerca de três mil livros em caixas de papelão entulhavam dois cômodos duma casa velha, onde cupins faziam a festa. Por meus filhos serem herdeiros, será que eu não resolveria a questão? Sim, tentaria resolver, mas como? Onde enfiar três mil livros, de uma hora para outra? Pedi a Deus uma luz. Decidida, nas férias de janeiro, encarei as curvas da estrada de Santos. Fiz inúmeras viagens, o carro ia vazio e voltava cheio, verdadeira maratona, para liberar a casa de meus amigos. Perdi cinco quilos em uma semana, no afã de transferir, doar, organizar e limpar coleções bagunçadas e imundas de pó preto do cais, pois a biblioteca estivera, anos a fio, num escritório no centro histórico de Santos. Obras-primas mofadas foram parar no lixo. O coração doeu. Quem é viciado em leitura sabe o preço que se paga, não só na livraria, mas na conservação de volumes que parecem dar cria: a limpeza não acaba nunca, o espaço é sempre insuficiente, os dedos doem, a renite ataca com tudo, as pernas amolecem. E mais – como regra, faxineiras não querem limpar livros. Quando muito, passam um paninho nas lombadas e pronto. Se, por milagre, tiram-nos do lugar, põem de volta tudo fora de ordem e até de cabeça pra baixo. Para encurtar a novela: a maratona, que me rendeu, também, intoxicação por querosene, valeu a pena, pois eu e meus queridos recuperamos um material raríssimo neste século 21. Só que, para mim, é chegada a hora do desapego. Pouco a pouco, desfaço-me das coisas que não mais têm serventia. Li, leio e releio muito, varando madrugadas, o que me rende olheiras permanentes. Mas jamais darei conta de todas as maravilhas de Machado de Assis (releio, agora, Iaiá Garcia) , Vieira, José de Alencar, Castro Alves, Fernando Pessoa, Cecília Meirelles, Pearl Buck, Dostoiévski, Éxupèry, Aluisio Azevedo, Eça de Queiroz, João Cabral de Mello Neto, Vinicius etc. Dar-me-ei, sim, por satisfeita, se a fila de atualíssimos, como Raduan Nassar, Milton Hatoum, Ariano Suassuna e outros, andar rapidinho. Nos últimos três anos, mandei em frente quilos de dicionários, gramáticas, coleções de direito, romances, enciclopédias (a última foi a fantástica Larousse, dada para um jardineiro com dois filhos estudantes e sem computador). Alguém poderia indagar: ‘Mas os livros não eram para os herdeiros?’ Eram, só que filhos e netos estão “noutra”, a tecnologia desbancou a leitura no papel, a falta de tempo e de espaço são justificativas para a biblioteca continuar, eternamente, na casa da mãe. Porém, ela também está “noutra”. Triste pensar que não posso mais conservar tantos livros. Amo bibliotecas! Mas consola saber que outros usufruem o que muito me deu prazer e cultura, além de companhia das boas. M. Inês Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

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