domingo, 23 de março de 2014

Favelinha

Favelinha Nas datas mais festivas do ano, sobretudo no Dia de Finados, um dos pontos mais procurados da cidade é o “Museu a céu aberto” , ou seja, o Cemitério Municipal São João Baptista. O entra e sai de visitantes é invejável: enquanto muitos reverenciam seus queridos , outros, boquiabertos, admiram os trabalhos de Fernando Furlanetto (1897-1975), escultor brilhante, cujas obras só faltam falar, tal o esmero das feições primorosamente delineadas. É nesse ambiente artístico e badalado que terei minha última morada, o que é uma honra, pois partilharei a companhia de gente notória, cujos túmulos ostentam preciosidades, como A Piedade, O Menino da Chupeta e tantas outras. Porém, àqueles que, no futuro, pensarem em me fazer uma visitinha, aviso que o campo santo tem uma dicotomia gritante: em primeiro plano, a parte nobre, com jazigos imponentes, enriquecidos por Furlanetto; em segundo plano, a parte “nova”, cujo epíteto é “favelinha”. Por favor, procurem-me na quadra 29 – 67 desta. Evidentemente que ninguém escolhe morar em favela. Assim, quando, em 2009, comprei um pedacinho de terra ali, para meus queridos pais descansarem tão juntinhos quanto nos 60 anos de vida em comum, ignorava ter optado pela favelinha, onde, segundo dizem, era para ter um gramado verdinho, com sepulturas ao rés do chão e placas identificando seus moradores. Nada mais. Só que o projeto lindo e singelo não saiu do papel. Sei lá por quê. Longe de mim a discriminação, mas é fato que, dia a dia, a favelinha se agiganta: sem nenhuma pavimentação, está entupida de campas coladas umas às outras, algumas revestidas, outras, no cimento puro, flores artificiais desbotadas, vasos quebrados enfeitando o chão, onde o mato cresce adoidado. Uma vez na vida outra na morte, a máquina rapa o meio das “ruas”, largando as beiradas pra trás. O quadro horripilante é arrematado pelo lixão que, mesmo do lado de lá da favelinha, não escapa ao olhar do visitante. Claro que o lixo também vem da parte nobre, mas fica longe dela, uma espécie de Morumbi imune a mazelas. É entre a favelinha e o lixão que, há tempos, uma capela deu lugar ao Instituto Médico Legal que, por razões escusas, está desativado há mais de três anos. Assim, a favelinha ficou enriquecida com um elefante branco mal-ajambrado e ao deus-dará. Só não digo solitário, pois transeuntes que cortam caminho por um atalho dentro do cemitério, passam junto ao IML e lascam-lhe um bom dia. Na tentativa de tapear a população, dizem os capitães da cidade que o IML, verdadeira pocilga, está em reforma, embora já reste comprovado que, se está, é entre aspas. A favelinha é testemunha silenciosa dessa atual conjuntura. A inoperância do IML agrava o sofrimento de famílias inteiras, pois os restos mortais de vítimas de violência têm que viajar até o IML da vizinha Mogi-Guaçu, sem prazo para a volta. A espera indefinida para o velório e o sepultamento é um martírio. A dignidade da pessoa não cessa com a morte, mas, ali, é desprezada, vilipendiada; o morto se transforma em mera coisa sujeita ao vaivém. Assim, além de parte do cemitério de São João Batista abrigar meu endereço final, abriga também um monstrengo inútil, embora a placa capenga indique, pomposamente: Governo do Estado de São Paulo Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública Superintendência de polícia técnico-científica Equipe de Pericias médicas Necrotério Municipal São João da Boa Vista M. Inês Prado Março/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

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