sábado, 6 de dezembro de 2014

É "da hora"

É “da hora” Seresta e muito mais, em estação ferroviária, combina com poesia, é lazer garantido. Com ar fresco, luar, plateia descontraída, fica melhor ainda. E lá estávamos nós. Afinal, o futuro está encolhendo rapidinho, há que se aproveitar tudo de bom ao nosso alcance. Só que nada é perfeito. Logo após o inicio do evento, minha amiga e eu ficamos incomodadas com gente conversadeira por perto. Então, revezamos olhares feios para trás. Tentativa vã. Como estávamos ali para curtir música – conversa só nos intervalos –, resolvemos mudar de lugar. Fomos pro lado oposto, certas de nos livrarmos do blá-blá-blá inconveniente. Mera ilusão, pois lá outro grupo também papeava e ria alto. Que chatice a falta de educação! Eu havia notado um cidadão de pé, perto do local em que nos instalamos. Música vai, música vem, eis que o sujeito senta-se ao meu lado. E ai eu é que, contrariada, tive que conversar, ou melhor, responder a perguntas. De onde eu era, qual meu nome, se era viúva, tinha filhos, netos, se tinha problema na perna etc. O sujeito se animou, o questionário não tinha fim. Dei a entender que não era hora de papear. “Estou falando baixinho”, justificou ele. Cai na asneira de dizer que meu problema não era na perna, mas no pé. Pra quê! Aí que choveram indagações: caiu, quebrou? Expliquei em duas palavras e fixei o olhar na apresentação, deixando claro que não queria papo nenhum. Pior ainda. Ele desandou a propor a cura do meu pé, com reza, arruda, alecrim, água. Será que eu não acreditava em Nossa Senhora Aparecida? Claro que sim, mostrei-lhe a medalha herdada de meu amado pai. “Olhe, já curei mais de mil pessoas e não cobro nada, viu? Três sessões e você fica boa” _ insistiu ele. Eu disse que não havia tempo, que logo viajaria, mas que rezasse por mim. Que burrada! Ele agarrou-se à brecha: “Não, tem que ser pessoalmente. Garanto, curo seu pé, assim você viaja sem dor...” A toda hora eu pedia: “Psiu! Agora não pode conversar...” Inútil. Puxava outro assunto. Até que passou a falar da vida dele, do que fazia, dos jipes e motos que tinha e do que gostava: fazer trilha, pular de asa delta, paraquedas, esportes radicais. Por fim, ousou: _ Olhe, vamos dar um rolê, amanhã, andar de moto? É “da hora”! Não acreditei no que estava ouvindo. Em plena seresta, eu, uma setuagenária, sendo convidada a dar um rolê? E de moto? Ele garantiu que teria cuidado, iríamos devagarzinho, apreciando a natureza... Será que pareço assim tão simplória? Só me livrei desse apuro quando o público foi convidado a cantar e dançar. O tagarela quis me levar para um bolerão. Não topei, falei que preferia outros ritmos. Entre parênteses: ele havia dito que dançava qualquer coisa. Enfim, a única saída para não continuar a ouvir uma ladainha maluca foi dançar tudo que veio após o bolero. Como previ, ele não dançava nada, pulava feito cabrito. Entretanto, fingi que estava satisfeita com o par, dancei todas, procurando impor certa distância. Pelo menos, escapei das propostas de reza, rolê e de outras coisas “da hora”. Como se diz: eu mereço! Sim, mereço rir muito das “graças” desta vida. Afinal, viver com seriedade o tempo todo faz mal. Mas não tenho dúvida que esses lances tragicômicos se encaixam direitinho na verdade pescada no Face: “A música me dá a calma que o mundo tira.” Em tempo, faço justiça: o carinha é cavalheiro, segura a cadeira pra dama não sentar no chão e até ajeita o casaco que a gente joga nas costas pra não se resfriar... Atchim! minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Dez./14 Publicação no Extra : 6/12/14

domingo, 30 de novembro de 2014

Prenda minha

Prenda minha Sempre que posso, assisto à missa afro, na Igreja de São Benedito, parte da programação do Dia da Consciência Negra aqui na terrinha. O clima é alegre, colorido, ritmo peculiar adaptado a cânticos religiosos. Ambiente acolhedor, singelo, que vem ao encontro do meu pensar – sinto-me bem em igrejas sem ostentação. É muito prazeroso e proveitoso o convívio com a cultura especifica de cada etnia, pois, ao apreciar seus hábitos, ampliamos nosso saber. E mais, a participação de eventos, quaisquer que sejam, proporciona-nos a chance de conhecer pessoas interessantes, especiais. Neste ano, a missa afro teve o horário alterado para as 20h15, o que surpreendeu muita gente. Às 19 h a igreja já estava com plateia razoável, pois o horário convencional seria às 19h30. Para mim, essa postergação foi lucro. Sentei-me ao lado de duas irmãs gaúchas, e logo o papo rolou solto, só interrompido no início da celebração. Fiz questão de anotar alguns tópicos da nossa conversa amigável, pois as moças simpáticas e dadas me ensinaram muitas coisas. Como se diz – vivendo e aprendendo. Vejam, muitas vezes, truncamos certas noções e até passamos a vida com mil distorções, por ignorância ou por preguiça de buscar esclarecimentos nas fontes. Hoje, mais do que nunca, isso é imperdoável. A par dos velhos dicionários, a internet aí está, bastando alguns toques, para termos um leque de informações sobre qualquer tema. No meu caso, aproveitei o encontro com as meninas gaúchas, para várias indagações, já que a avó delas conviveu, um bom tempo, com a família de Getúlio Vargas. De início, eu quis saber o significado de “prenda” que, para mim, é mimo, presente, algo que se ganha, por exemplo, nos eventos beneficentes, participando de rifas, sorteios, e também nas festas juninas. A questão é que um namorado meu me chamava de “minha prendinha”, justificando que o sonho dele era ter uma namorada de rabo de cavalo... Passados anos, o termo fica mais claro, ampliei meu saber: “prenda” é a namorada do gaúcho, é também o par dele na dança; usa, sim, o cabelo preso ou meio preso, para não ficar descabelada durante os volteios. “Vou-me embora, vou-me embora, prenda minha, tenho muito que fazer, tenho de ir para o rodeio, prenda minha, nos campos do bem querer...” (Paixão Cortes, 87 anos, gaúcho agrônomo, folclorista, pesquisador, autor de várias obras, como “Manual de Danças Gaúchas”) E no blá-blá-blá com as irmãs carismáticas satisfiz outras curiosidades. A dança tão divertida e precisa, que eu, meio envergonhada, chamava de dança dos pauzinhos, denomina-se “chula”. É dança exclusivamente masculina, uma espécie de desafio. Da mesma forma, a “dança dos facões”. Ah, um casal “pilchado” é o que veste traje típico gaúcho, sendo que a “bombacha , calça fofa usada pelo cavalheiro, é de origem árabe. Começada a missa, a “aula” sobre gauchismos terminou. Então, meus olhos passaram à análise da procissão de entrada: jovens brancos e afrodescendentes vestidos de branco e que, mais tarde, fariam bela apresentação de capoeira. Próximo ao altar, um coro feminino em traje estilizado, na base de blusa branca e saia colorida, colares e outros adereços. Durante as leituras, frisou-se a importância dos movimentos que combatem a discriminação do negro. Falou-se de Zumbi dos Palmares, razão maior do Dia da Consciência Negra, pois o líder dos palmarinos na resistência à escravidão morreu em 20 de novembro de 1695. A Lei Nº 12.519, de 10/11/11 tornou oficial a data. Na homilia, como era de se esperar, o celebrante reforçou a relevância da igualdade. Chegado o ofertório, outra procissão adentrou a igreja, carregando iguarias típicas, as oferendas;logo mais, elas seriam servidas ao público. A celebração encerrou-se com o “Canto das Três Raças” ( Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro),que a saudosa Clara Nunes interpretava como ninguém: “Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil, um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos ares, no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou...” Em seguida, a capoeira e o ponto alto do evento - a confraternização. Ali se percebe que “todos somos irmãos”. Em filas organizadas, com cessão de lugar para os mais velhos, acontecem reencontros, novas amizades, papo informal. Então, todos partilham o banquete: feijoada, cuscuz, canjiquinha, arroz doce, bolo, delícias preparadas por mãos amorosas. Delicioso o saldo da noite: além de conferir culturas diversas, dirimi dúvidas com gaúchas gentis e abiscoitei novos saberes. Confesso que vim pra casa com gosto de “quero mais”. Por isso, entrei a madrugada no PC, pesquisando costumes gaúchos, ao som de Prenda minha. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês:minesprado.blogspot.com.br Nov./14 publicaçõa no Ed. Extra de 29/11/14

sábado, 15 de novembro de 2014

O 15 de Novembro e a viola caipira

O 15 de Novembro e a viola caipira Faz tempo, ando sem vontade de escrever a respeito de datas cívicas. Motivos há, mas é bobagem gastar o verbo com eles. Preocupa-me, sim, o que cada um de nós pode fazer, para ajudar este Brasil e tornar o povo, por natureza de bem com a vida, mais satisfeito com a realidade que o cerca. Ontem, 11 de novembro, o Theatro Municipal esteve lotado, graças à maravilhosa apresentação da Orquestra Paulistana de Viola Caipira., fundada em 1997 pelo maestro Rui Torneze, sob o apoio didático do Instituto São Gonçalo de Estudos Caipiras. A orquestra trouxe metade dos seus mais de sessenta integrantes, devido ao palco do nosso teatro não comportar o grupo todo. O repertório riquíssimo passeia gostosamente pela música caipira de raiz e vai muito além – música erudita, world music, new age e MPB. O programa eclético foi aberto com o Hino Nacional, verdadeiro cartão de visita, seguido da Ave Maria, Chora Viola, Viola Quebrada (Mário de Andrade), Ária da 4ª Corda, de Bach, Reciclagem, Fogão de Lenha, Tocando em Frente, Pé de Ipê, El Condor, Meu Primeiro Amor, Trenzinho Caipira (Villa Lobos/Ferreira Gullar), Ponteio (Edu Lobo), Brasileirinho, além de um arranjo mesclando música caipira e música portuguesa. A declamação de Ode à Viola (Rolando Boldrin) antecedeu o bis. O que tem a ver a Proclamação da República com esse evento que enriquece as comemorações da “Pérola Centenária”, epíteto que dei ao nosso teatro? Muito. Em plena terça-feira, ali estava uma plateia participativa e atenta, feliz pela oportunidade de conjugar cultura e lazer, esquecida dos problemas do cotidiano, dos preços que não cessam de subir, da seca que castiga parte do país, do descaso com os serviços essenciais, das novelas políticas, como corrupção em várias instituições, sendo a Petrobrás a top. Talvez, Ponteio (1971) suscitasse algumas reflexões ... Estou certa de que, se naqueles momentos mágicos, o público, embevecido, fosse perguntado se quer a volta da ditadura militar, o confronto de irmãos nas ruas, manifestações na base do vandalismo etc., ninguém diria “sim”. Somos uma república federativa de peso. As chances de o Brasil ocupar posição de destaque, sem maquilagem, no panorama mundial não é utopia. Podemos, sim, ser referência, em todos os aspectos. Basta a conscientização de que o bem comum é soberano. Interesses escusos devem ser repelidos, através das urnas, cuja apuração tem que ser respeitada. Acirrar ânimos é sinal de desamor e inconsequência. É querer ver o circo pegar fogo e rir da desgraça alheia. Como geração que virou o século, afirmo que blackouts, racionamento, insegurança, medo do outro (segundo J.Simmel, “somos todos irmãos”) etc. não é cardápio que se sirva em recôndito nenhum deste mundo. Será que manchetes diárias a nos oferecer amostras das desgraças que campeiam por tantos povos em guerra permanente, inclusive civil, não bastam? Será preciso degustá-las, saborear dor e sangue? Consola-me não estar sozinha, mas em concordância com vários articulistas e cientistas políticos conceituados. Dia destes assisti a um vídeo na internet, em que um sujeito explica, com muita didática, nossa história política, desde Dom Pedro I, mencionando a influência da maçonaria. Estudar a história, para entender o presente, é importante. Porém, na prática, qual o benefício de apontar o dedo, sem sair do lugar? O Brasil precisa de gente positiva e determinada que assuma os remos, até que a nação alcance o porto seguro. Dali, altaneira, singrará pelos mares, não para subjugar povos, mas para estabelecer laços fraternos de todo naipe, com fulcro na respeitabilidade. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Nov./14

domingo, 2 de novembro de 2014

Fios do cotidiano

Fios do cotidiano Fios, no sentido literal, sempre me irritam. Refiro-me àqueles imprescindíveis para a conexão das tantas engenhocas que movimentam o nosso viver: enrolados, embolados, no rés do chão, atrapalhando a limpeza da casa, desafiam qualquer bom humor. Nem preciso dizer como ficamos, se estamos com pressa para ligar algo e a coisa não funciona. Justo na hora da urgência, o fio faz graça, dá problema ou está embaraçado. Ainda bem que pilhas e baterias vêm desbancando os desajeitados, mas cheios de empáfia. Creio que, em toda família, há amantes dos fios, aqueles que adoram ligar um monte de aparelhos e acessórios pela casa toda, não importa se no quarto, na sala, onde for. Fujo dessa gente e, se pinta alguém com a sugestão de ligar mais alguma novidade na minha casa, já sabe minha reação: um não categórico. Os fios que tenho bastam para treinar a paciência. Embora a ojeriza a fios, há anos rabisquei um poema sobre os tantos fios da vida – e são inúmeros – e suas funções positivas ou negativas. Admirei-me com a lista deles. Fiquei tão entusiasmada que saiu um poema quilométrico, o qual foi inscrito em concurso literário da Academia de Letras da terrinha (à época eu não era acadêmica, mas frequentadora assídua das suas sessões) . Minha tia e mestra, poetisa das boas, Ivanira Bohn Prado, alertou-me que havia tempos poema longo não tinha chance nos concursos. Traduzindo: Já era. Mas, ao contrário do previsto, Fio e fios foi bem classificado. Claro que a surpresa foi grande e a satisfação maior ainda, minha, dela e de todos que acompanhavam meus voos. Dos tantos fios que pus no “épico”, destaco o fio da teia de aranha e o fio da vida. Embora meu pavor de aranhas, reconheço-as como artistas primorosas. Observar uma teia é estar diante de uma obra inigualável. A delicadeza da trama, a logística da expansão, a escolha do local, às vezes inóspito aos nossos olhos, tudo é admirável! Sem esquecer que a teia é também artimanha para capturar alguns coitadinhos para o banquete das arteiras. Quanto ao fio supremo, o cordão umbilical, é indispensável, não só como veículo de nutrição, mas como segurança para a gênese do ser. Arrepia pensar que ali corre o alimento para o pleno desenvolver do feto, mas que qualquer avaria no bendito cordel pode ensejar má formação e até morte por estrangulamento. Que fio singular esse! Arrepia também a ideia de que, uma vez cortado, deixa à mercê do mundo um pequeno mortal indefeso. Creio que, nesse exato momento, iniciam-se os desafios maiores desta vida. O corte do cordão inaugura o rol infinito de pedriscos e pedras a encararmos vida afora. Pensando bem, é luta diuturna. Fica aqui uma amostra de Fio e fios II lugar – IX Concurso de Poesia, Conto e Crônica da ALSJBV -2002 Condutor da luz, da treva, Da pipa, da bomba, Fio aéreo, fio-terra. Fio natural, Pleno de seiva, Que mantém a vida De qualquer mortal. Fio dos fios, O da teia, Obra de arte, Construção sutil. Teia de aranha, Teia de intrigas, Esta artimanha Das mais antigas. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 1º/11/14

sábado, 18 de outubro de 2014

Francisco e o novo tempo

Francisco e o novo tempo Se acabássemos com a hipocrisia, tudo neste mundo ficaria mais fácil. As polêmicas que rodeiam certos temas, como aborto, homossexualismo, drogas, seriam minimizadas, sobrando espaço para ações efetivas de apoio, orientação e coibição justa de tudo que não é lícito. De modo geral, os cidadãos que acusam, julgam, futricam são aqueles que se imaginam a salvo de situações ofensivas à moralidade (deles, claro!). São eles que se horrorizam diante de certas posturas institucionais, como a abertura da igreja católica, ao oferecer seu regaço àqueles marginalizados pela sociedade – homossexuais e divorciados. Hipócritas entendem cristianismo como andar absolutamente na linha, nada mais. Saiu da linha ou não disfarçou o desvio de conduta, é pária. Tenho muita vontade de indagar aos falsos moralistas se escorraçariam uma filha, por gravidez precoce ou se a acolheriam, com um viva à perspectiva de gente nova na família. Também gostaria de saber se um filho ou filha homossexual teria guarida ou seria alvo de desamor e vergonha. E mais: se um membro da família envolvido com o inferno das drogas teria respaldo ou ficaria relegado à sarjeta? Na teoria é até fácil responder a tais propostas. E na prática? Você, leitor, ajudaria sua filha a ir a uma espelunca qualquer para se livrar de uma vida que mal se inicia? Para não dizer mal iniciada, indefesa, alvo da tirania da sociedade. Estaria ali segurando a mão de sua filha, enquanto invadem o corpo dela, criminosamente? Claro que, se você tem posses, talvez proporcione o aborto em condições Vips... O importante é que os amigos não suspeitem dessa mácula na família. Agora, de véu e grinalda, barriguinha ainda discreta, tudo fica lindo e válido, digno de festança, não é? Um filho ou filha poderia lhe confessar o amor por alguém do mesmo sexo? Você compreenderia esse afeto, daria sua bênção ao par que pode ter lições valiosas para partilhar e até ser parâmetro para outros que sofrem rejeição, verdadeiros órfãos da vida? Você incentivaria um homossexual a se assumir? Dar-lhe-ia apoio e carinho? E quanto ao usuário de droga? Sabemos, por experiência própria ou de ouvir falar, que é uma barra ter um drogado dentro do lar, pois a insegurança e o medo estão presentes vinte e quatro horas. Se o filho ou a filha com vício sai com os amigos, as condições em que retornará ao lar – se retornar – são uma incógnita. Nunca se sabe. Poderá estar normal, alterado (a), com a agressividade à tona, ou caindo pelas paredes, face descorada, olhar embaçado, falar desconexo, um farrapo humano. Você talvez tenha que correr com ele ou ela, para um pronto-socorro, sem pejo nenhum. E pior, um médico talvez aconselhe a internação urgente daquele ente querido, ora um quase desconhecido que se rebelará contra você. E se houver envolvimento com traficante, se você perceber que coisas estão sumindo da sua casa, você irá à policia? Denunciar um filho ou filha é dolorido demais. Porém, mais dolorido é perdê-lo para o submundo, caminho sem volta. Caro leitor, nestas décadas bem ou mal vividas, mas certamente proveitosas, graças aos ensinamentos que me trouxeram, já vi de tudo. Confesso que a dor de mãe, leoa na proteção da prole, é indescritível. Que homens de boa vontade se proponham a sair da hipocrisia e busquem soluções cristãs, sob os auspícios do papa Francisco e de outros olhares compassivos, para questões impossíveis de serem varridas para debaixo do tapete, como aborto, homossexualismo, drogas, uniões não convencionais e outras. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Out./14

sábado, 11 de outubro de 2014

Eleições 2014

Eleições 2014 “Somos todos responsáveis por essa situação, já que os que governam e os que fazem leis foram eleitos por nós.”, afirma Ferreira Gullar, em Somos todos responsáveis- Folha de S. Paulo, E10, de 5/10/14. Meus leitores devem ter estranhado que, na última semana, eu falasse de pomba, putrefação etc., abstendo-me de focar meus rabiscos nas eleições. Foi intencional. O que não significa que esteja alienada, em meio à doce vida. Muito pelo contrário. Que eu lembre, desde que me tornei eleitora, nunca havia participado tanto do clima eleitoral como desta vez. Assisti a quase todos os debates e também à boa parte da propaganda política. Estou antenada no que acontece Brasil afora. E assim persisto, mesmo porque o 2º turno para presidente e alguns governadores já foi anunciado. Entretanto, no 1º turno, determinei-me a exercer o direito de voto facultativo, graças aos meus mais de setenta anos. Não compareci às urnas, não por comodismo nem por não ter mais a obrigação legal. Foi por convicção de que o voto no “menos pior”- expressão esdrúxula que cansa os ouvidos - não bate com minha consciência. Além disso, endosso a reflexão de Ferreira Gullar. Afinal, reclamamos do resultado da nossa própria omissão, descaso, ao não exercer a plena cidadania, pois dá trabalho e dor de cabeça. E exercício de cidadania é atitude contínua, persistente, sem férias. A denúncia de coisa errada, por exemplo, é custosa, em todos os aspectos, exige coragem e compromisso. A leviandade tem que passar longe dessa questão. Exige também que tenha começo, meio e fim. Não pode ser atitude momentânea que logo cai no “deixa pra lá”. Aproveitando as queixas veiculadas nesta semana, indago: Quem se preocupou em denunciar a distribuição extemporânea de santinhos? Quem se preocupou em apontar a irregularidade de cavaletes de propaganda política postados ou caídos nos canteiros centrais de avenidas, pondo em risco a segurança dos pedestres e do trânsito? E mais: aqueles que fizeram a lição direitinho, cumprindo todo o ritual da votação, será que assistiram aos debates entre os candidatos e às sabatinas exibidas pela mídia, para se prepararem minimamente para o voto consciente? Ah, que coisa chata a TV, só debates, horário político obrigatório, propaganda eleitoral! Dias antes da eleição, fiz questão de checar o trânsito no Facebook e constatei que fica bem mais concorrido nesses horários. Ao contrário do horário das novelas, quando a rede fica deserta ... Nosso sistema político necessita de reforma urgente, de tal modo que deixe de ser motivo de chacota e do famoso “política é sujeira”. Há que se levar a sério o que é sério, para despertar o interesse dos cidadãos de bem, aqueles que se preocupam com um futuro melhor para as gerações mais novas. Política tem que deixar de ser meio de vida, em que famílias inteiras se banqueteiam custeadas pelos cofres públicos, destino maior do nosso suor. O voto deve ser facultativo, pois, assim, os políticos terão preocupação efetiva de cativar o eleitor, para que ele vote por prazer e não por imposição legal. Assim, o candidato a cargo político dançará o miudinho “amiúde” e não apenas em período eleitoral. A reeleição, o festival de inaugurações de obras maquiadas em ano de eleição e outros atravancadores do nosso sistema político têm que ser sepultados. Longe de mim qualquer apologia de infração às leis e ao direito. Apenas, cansei de flagrar voto manipulado, quando trabalhei em secção eleitoral. Lá, pessoas “de poucas letras”, empunhando um papelucho, adentravam a sala de votação, nervosas, atrapalhadas, para seguirem “a sugestão” do patrão ou da patroa. Uma vergonha a exploração da ingenuidade daquela gente humilde. Em contrapartida, o voto do brasileiro letrado se caracteriza pelo individualismo, pois despreza o bem comum e os interesses dos miseráveis. O professor vota no candidato que favorece o magistério, o empresário... Aos menos favorecidos, órfãos de tudo, resta seguir os patrões, para manter o emprego, ou, se livres de relação empregatícia, escolher o político/partido paternalista. Assim, porque nos falta educação para atuação efetiva no processo político, com razão Ferreira Gullar: somos todos responsáveis pelo status quo. Para finalizar, uma curiosidade: Como será o número de equilibrismo num circo político (Câmara Federal) composto por cerca de trinta (30) partidos? minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 11/10/14

sábado, 4 de outubro de 2014

Soberba inútil

O jardim amanhece triste. Num canto sob o buxinho, cinzenta, inerte, a ave abatida. Pezinhos ressecados indicam que já deve estar ali há mais de um dia. Quis jazer discreta, sem alarido, escondida no sofrimento. Decido que não mexerei nela. Mais tarde, provavelmente na manhã seguinte. É algo bem desagradável ter que removê-la para o lixo. Assim como é desagradável ter que fazer visitas a doentes, comparecer a funerais e outras atividades inerentes à vida em sociedade. A gente não foge de certas obrigações dolorosas, mas bem que gostaria. Como preferiria ignorar a pomba, sim, é uma pomba morta no meu jardim. E tenho que dar jeito nela, pois logo o mau cheiro empesteará a casa e a vizinhança. A manhã seguinte chega. Penso que, por mágica, a pomba não esteja mais lá. Um gato ou outro animal bem pode ter me livrado daquele desafio. Mas, não. Os despojos da ave me aguardam. Mãos à obra, pois não há ninguém a quem eu possa delegar a tarefa ingrata. Pego um rodo e um saco de lixo e enfrento o inevitável. Com jeito, trabalho com o rodo, de tal maneira que emborque a pobrezinha diretamente no saco. Mal mexo nela e o fedor invade minhas narinas. Prendo a respiração. Tenho a sorte de boa pontaria. Acerto o manejo do rodo de tal maneira que, num segundo, os restos mortais da coitadinha, na companhia dos que a fazem de banquete, já estão ensacados. Dou um nó bem apertado na boca do saco e levo-o à lixeira. O rastro da putrefação me segue. Acabo de constatar o óbvio, ou seja, uma pequena amostra do fim de qualquer animal morto: putrefato, sendo consumido por vermes, a não ser que seja cremado. Meu pensamento dá um salto: pula da pomba para a literatura. “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” – Machado de Assis assim destinou seu Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Dedicatória singular essa. Se foi ato de humildade, se foi sadomasoquismo, se foi marketing, só Machado sabe. Parodiando o fundador da Academia Brasileira de Letras (1897), ensaio a dedicatória de um pretenso livro meu: “À labareda que primeiro lamber as carnes frias do meu cadáver, dedico estes rabiscos.” E já adianto aos leitores que não se trata de sadomasoquismo nem pieguice. É, sim, soberba inútil. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Out./14

sábado, 27 de setembro de 2014

Agora Inês é morta

Agora Inês é morta Meio da tarde. Ela olha a louça que pede cuidados faz um tempão. Aliás, louça não, um jogo de cristais, presente de casamento. Então, quanta água corrida por debaixo da ponte! Os tios queridos que lhe deram o presentão faleceram há décadas, mas os benditos cristais continuam donos do pedaço e exigem limpeza. Cerca de oitenta peças ocupam metade do armário da copa. Vamos, coragem, mulher... Mãos à obra. Que adianta postergar uma tarefa que é só sua? Bem verdade que, na última limpeza, quebrou-se um cálice, pois a fragilidade dessas coisinhas é absurda. Mal dá pra acreditar que se invente algo que se parte sob a pressão mínima dos dedos, de tão fraquinho. Escancara as portas do armário e enfrenta o desafio. Primeiro tira de lá peça por peça, coloca na pia com o maior cuidado. Haja pia! Envergonha-se do pó acumulado: cada peça extraída deixa uma rodinha perfeita no espaço que ocupava. Depois de tirar tudo, mira as prateleiras estampadas pelo pó. Pano embebido com vinagre, já. E inicia um ritual de esfrega/ enxagua pano sem fim. Em cima do armário deve estar um horror. Pensa na escada de cinco degraus bem à mão. Mas desiste, pois, se cair e se arrebentar, ela “vai” e aquelas coisinhas cheias de si ficam. Pega um rodo, enrola o pano úmido, passa sobre o armário, livrando-o da sujeira que só ela sabe e ninguém vê. Dona de casa é tola mesmo. Bem, agora é lavar as delicadezas enjoadas, embora “lindas de viver”, como diria a impagável Hebe Camargo. Sabe que elas não aguentam bucha nem dedos pesados. O jeito é mergulhá-las, aos poucos, na pia cheia d’água e detergente. Depois, enxaguar uma a uma, com toda a calma do mundo, e emborcá-las sobre toalhas limpas, para secarem livres de esbarrões. Agora é esperar. Aquilo tudo só pode voltar pro lugar bem mais tarde. Por enquanto basta. Ela quer ar puro. O relógio voa. Cai a noite. Hora da Ave Maria. Balbuciando a oração, ela vai conferir a caixa do correio e acender as luzes do jardim. Ao longe, a serra da Mantiqueira já boceja. Lembra-se das palavras do irmão: “Sente-se nesta varanda e olhe para aquela serra o quanto puder.” Judiação ter perdido o crepúsculo por causa de coisas materiais e, o pior, supérfluas. Ops, nada a ver jogar a culpa nelas. Culpada ela por ainda ter um monte de vidro intacto e que já virou o século. Por que não usar aquelas fracotinhas no dia a dia? Por que poupá-las das mãos alheias, mais desastradas do que as dela? Vê a cena do neto, dez anos atrás: o pequeno alcança um daqueles copos finíssimos, esbarra-o na torneira do filtro e “plim” - o primeiro dano na coleção... Vê-se, contida, advertindo-o: “Querido, esse copo não pode pegar...” Que avó-dose! O coitadinho mal chegara à fase dos porquês... Hoje, recrimina-se. Ela, a família, os amigos, todo mundo deveria usar aqueles cristais à vontade, pois dão sabor especial a qualquer bebida, até à água. Além disso, com o uso, boa parte deles já seria pó. Então, sobraria tempo para os reais prazeres da vida, como curtir o adormecer da Mantiqueira. Tempu persu é tempu persu. Agora Inês é morta. Aprenda, mulher! minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Set./14 Publicação em 27/9/14 Edição Extra

sábado, 13 de setembro de 2014

Presidente ou presidenta?

Presidente ou presidenta? Esse assunto já se esgotou, porém Ferreira Gullar, em ‘Quem manda sou eu’ (Folha, E10, de 7/9/14), mostra-se fulo da vida com a imposição da presidente Dilma, que quer ser chamada de “presidenta” e que, em 3 de abril de 2012, assinou a Lei n º 12.605/12, obrigando o país inteiro a ‘submeter-se a uma tolice’. De acordo com a referida lei, “As instituições de ensino público e privado expedirão diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada.” Em face da presidenta mandona, Gullar descarrega seu fel, concluindo que teremos ‘gerenta’, ‘assistenta’ etc. Ora, não é bem assim. Concordo que a expressão “presidenta” é horrorosa. Tenho um amigo, colaborador deste Extra que, vez ou outra, chama-me de “presidenta”. A brincadeira e também nossa boa amizade decorrem de eu ter sido presidente da seção eleitoral em que ele era mesário. Acredito que nada tem a ver com ser mandona ou algo assim. Entretanto, sei que sou exigente, porque levo a sério o que é sério. Afinal, ter que aturar molecas iniciantes, que mal sabiam localizar eleitores na lista de presença, mas sabiam muito bem fazer graças, tirando os sapatos em plena votação, era demais pra mim. Ser “presidenta” de brincadeira vá lá, aceito e me divirto. Eu, como a maioria dos brasileiros, não consigo usar o termo numa boa. E Gullar idem. Porém, isso não nos autoriza a induzir o leitor a erro: segundo a Academia Brasileira de Letras, os vocábulos “presidente” e “presidenta”, aplicados ao gênero feminino, são equivalentes. Dicionários confiáveis, como o Houaiss – tenho vários, um deles de 1980 - ratificam tal ensinamento. Esdrúxula ou não, “presidenta” é palavra inserida no vocabulário da norma culta. Cansei de responder a e-mails sobre “presidenta”, lebre que se levantou e não se cansa jamais. Ou melhor, só cairá no limbo, quando tivermos mudança na presidência. Mas, realmente, cansa minha beleza, a insistência de certas pessoas sarristas que, num péssimo exemplo aos mais novos, emitem e/ou transmitem matérias desrespeitosas em relação a autoridades constituídas, não importa se estas são nota dez ou zero. Gosto não se discute. Quem sentir os ouvidos ofendidos tampe-os. E, claro, opte por chamar de “presidente” qualquer mulher que exerça função de presidência. Fácil. Hoje, 8 de setembro de 2014, publiquei carta no Painel do Leitor da Folha, com um elogio ao Ferreira Gullar, acompanhado de puxão de orelhas. O artífice da palavra tem a obrigação de partilhar conhecimentos até mesmo na discordância. Omitir informação pode induzir o leitor à propagação do equívoco. Portanto, sejamos responsáveis. E falando em responsabilidade, sou a favor do voto facultativo, demonstração espontânea de cidadania. Sendo obrigatório, submeti-me a ele desde os dezoito anos, mesmo que visse poucas opções de candidatos com “C”. Nestas eleições, em razão da idade, pretendo fazer jus à prerrogativa de não votar. Confesso que torço por mudanças no nosso sistema político: redução de partidos, extinção da “profissão” de vereador, deputado, senador, presidente, proibição de reeleição e outras. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Publicação no Extra de 13/9/14

sábado, 6 de setembro de 2014

As incongruências assustam

As incongruências assustam A mídia nos traz maravilhas e lixos, ao mesmo tempo. Para conviver com tudo que nos chega, diariamente, pela TV, jornais, e-mails, redes sociais, sem perder o equilíbrio, é preciso muito malabarismo e senso de humor. Basta assistir a um noticiário televisivo, para perceber o quanto de animalidade está à solta mundo afora. Esta semana o mundo, estupefato, assistiu ao vídeo em que um jornalista americano está preste a ser decapitado por suposto membro do Estado Islâmico. Na mesma ocasião, mostrou-se o êxito da captura de foragido da justiça, o ex-médico Roger Abdelmassih, sanjoanense, para vergonha nossa. Mulheres enganadas, molestadas e estupradas por ele comemoram a prisão, embora haja recursos interpostos à espera de apreciação do judiciário. No aeroporto de Congonhas, onde desembarcou, vindo do Paraguai, foi submetido a toda sorte de xingamentos e imprecações, como parte do revide pelos males que causou. Se fosse registrar aqui todos os fatos escabrosos, fruto da conduta animalesca do homem, faltar-me-ia estômago e ao leitor também, para digerir tanto lixo. Em compensação, as belezas captadas no dia a dia são refrigério à alma. Ainda ontem, ao acessar um PPS, fui às lágrimas: imagens espetaculares – flores em profusão, multicoloridas, em especial, cerejeiras em flor, tendo como fundo musical a Serenata de Franz Schubert. Fiquei em estado de graça, flutuando, diante de tamanha maravilha. Numa das imagens, um pavão belíssimo, arte da mãe-natureza, concorre com as flores. Quase pausei a exibição, para contar as cores que a linda ave carrega na cauda aberta em leque. Imponência e delicadeza estacionaram ali, em dose dupla, numa combinação perfeita. Pena que somos metralhados com o bem e o mal, numa velocidade impossível de acompanhar, sem sairmos zonzos. As incongruências da vida assustam. Como pode o ser humano subir tão alto, capaz de façanhas espetaculares, presenteado ainda pela Natureza em festa, e, ao mesmo tempo, decair, em fração de segundos, como autor de barbaridades inconfessáveis? Pessoalmente, não consigo me imaginar como uma gangorra maluca, com bem e mal refestelados em cada extremidade. Não dá! Mas noto que essa visão impossível de mim mesma parece normal para muita gente. No caso do médico, por exemplo, supondo-se que seja culpado das acusações que pesam sobre ele, como pode levar vida de rei, exibindo à sociedade estrangeira e à própria família um retrato de pai; marido extremoso? Pai que leva filhos à escola, que passeia, cultiva pomares etc. Pode? Pode, sim. Que será que esse projeto de homem tem no lugar dos miolos? No caso do degolador do americano, será que, terminado o “serviço”, em que ostenta onipotência, consegue sentar-se à mesa para um banquete? Será que o cheiro de sangue humano lhe atiça o apetite? Será que é pai? Será que sua cabeça vale mais do que a que ele golpeia? Será que uma lavagem cerebral o tornou autômato, insensível, incapaz do equilíbrio razão/ emoção? Se, no cotidiano, eu pudesse filtrar o conteúdo que vai chegar aos meus sentidos seria ótimo. Cresci, ciente da existência do bem e do mal. Mas jamais imaginei um mundo assim tão louco, em que flores e pássaros me encantam, ao mesmo tempo em que facas me estraçalham ... minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.

Nossa pele de bebê

Nossa pele de bebê Você entra apressadamente num banheiro, faz suas necessidades e... Caramba! Cadê o papel? Essa é uma situação corriqueira e atemporal. Viramos o século, dependendo do papel higiênico a nossa disposição nos sanitários da vida - em casa, avião, hotel, casa alheia ou até no mato. Há quem faça questão absoluta de ele ser de certa marca, mais macio, perfumado ou neutro, folha simples ou dupla, vinte ou trinta metros etc. Mas o que importa mesmo é sabê-lo ali, ao nosso alcance, na hora certa, não é mesmo? Interessante é que ele tem mil utilidades, além da básica – limpar/secar nossas partes íntimas. Algumas delas aqui vão. Cortou-se, ao fazer a barba ou depilar-se? Um pedacinho do santo papel colocado sobre o corte estanca o sangue na hora. O batom está muito forte? Aperta-se um pedacinho do papel entre os lábios e pronto – a boca fica mais discreta, sem ar de palhaça. Problemas com frieiras resultam, quase sempre, de enxugar mal o vão entre os dedos. Fazer um rolinho de papel e passar ali resolve essa chatice. Você, homem, teve sua carteira roubada, pois ela estava dando sopa no bolso traseiro da calça? Solução: dobre um tanto de papel e ponha no bolso de trás; guarde a carteira noutro lugar e, se houver uma próxima vez, divirta-se vendo o larápio fulo da vida, decepcionado, jogando pra cima de você o chumaço de papel. A janela do quarto perturba seu sono, chacoalha, porque foi mal colocada e o vento não quer saber do seu grilo com o barulho que deixa você insone? Amontoe um tanto de papel e enfie no vão entre a janela e a vidraça: que paz! E, se justo na hora do nº 2, vier uma poesia supimpa, não hesite, puxe uma folha do rolo e lasque ali seus versos, antes que fujam e você se lamente por desperdiçar seu lirismo na privada. Depoimento do papel higiênico: ‘Reconheço que sou indispensável na vida de todo mortal. Porém, pra sair da monotonia, pinto e bordo. Vira e mexe, escapo do pauzinho em que fico encaixado o dia todo e danço e rolo pelo chão limpo ou sujo, não importa. Ai que liberdade gostosa fazer um pouco de alongamento, à imitação dos meus usuários! Aí, se uma dona toda metida precisa de mim, divirto-me a valer: mãos bem cuidadas, pontinhas de dedos com medo de contaminação, querendo me agarrar - hilária essa cena. Outro lance divertido é quando meu rolo vai começar a ser usado e um ou uma infeliz morrendo de pressa não consegue achar meu início. Puxa-me, estraçalha-me, nada de acertar meu picote. Se eu estiver num daqueles suportes gigantes, próprios de rodoviárias e shoppings, aí a coisa engrossa, pois sumo lá na escuridão do troço e dali não saio, dali ninguém me tira. Vida boa a minha. Só odeio servir de banquete pra ratos. Vocês precisavam ver a cara dum fazendeiro cuca-fresca, ao me pôr na mão duma hóspede e só então notar que eu estava todo roído... ’ Pois é, viramos o século, mas o papel higiênico continua praticamente sem novidades. A grande diferença é que substituiu o jornal... Quem frequentou casas antigas, de gente mais simples, deve ter se limpado/enxugado com jornal cortado em quadrados pendurados num gancho de arame... Era bem desconfortável e anti-higiênico, só que noutros tempos ninguém pensava que a tinta e a aspereza do jornal faziam mal pra nossa pele de bebê, vero? minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês:minesprado.blogspot.com.br Set./14TC

sábado, 16 de agosto de 2014

11 DE AGOSTO

11 de Agosto (em memória de Dr. Pedro Lessi) Levantei-me, ligada na segunda-feira, dia de várias atividades, inclusive caminhada. Manhã de sol - melhor ainda. Saí, deixando o serviço adiantado: feijão descongelando, peixe temperado, alface de molho no vinagre, a lista é comprida. Só dona de casa entende disso. E, talvez, meia dúzia de homens mais jovens, pois repartem o serviço doméstico com a mulher. Mas não é desse cotidiano que quero falar e, sim, do Dia do Advogado, do qual fui lembrada por um colega de Facebook. Então, revi longo e sinuoso caminho percorrido. Desde criança quis ser professora e assim aconteceu. Outras questões da minha vida podem ter saído atrapalhadas, mas a vontade de menina se satisfaz até hoje. Comecei como normalista, seguindo o conselho materno; depois, estudei sete anos de inglês, por influência do marido; então, após lapso de vinte anos, retomei os estudos, fiz duas faculdades: Letras e Direito, para ter diploma superior. Inaugurei, assim, minha fase pós Santos. Quando anunciei que prestaria vestibular para Letras, papai e meu advogado santista protestaram: “O quê? Como? Mas você tem que fazer Direito!” E justificaram o protesto, com a afirmação de que eu levava jeito de advogada. Só então descobri algo que me tinha passado batido: eu era perspicaz, detectava rapidamente o cerne do problema, ao mesmo tempo em que tinha facilidade para pôr as ideias no papel. Não era à toa que, tempos antes, Dr. Lessi, “o defensor das mulheres” (uma delas a primeira esposa do Pelé), entregara-me o calhamaço da minha separação, para que eu rascunhasse um arrazoado, com provas. Mas eu estava certa. Com licenciatura em Letras, daria aulas em todos os níveis de ensino. Era o que eu precisava. E assim fiz. Somente dez anos depois de formada em Letras, parti para o Direito, satisfeita e satisfazendo a gregos e troianos. Dar os passos, em busca da justiça, é prazeroso. O sacrifício foi imenso, datilografava os trabalhos madrugada adentro e, às seis da matina, já estava de pé, na correria das aulas. Mas valeu, pois me realizei também como advogada, ainda que o retorno financeiro fosse ínfimo. Cada pedido “procedente” era uma conquista. Registro aqui um dos casos emocionantes em que atuei. Alguém pode imaginar, numa ação de reconhecimento de paternidade, o cidadão ganhar uma filha e um neto? A audiência em que a questão foi solucionada emocionou todo mundo – juiz, promotor, advogados e partes. Lágrimas podem ser lindas... Dos honorários, posso dizer, sem exagero, que mal pagavam a sola do sapato. A única marca financeira que guardo é uma mesinha de vime, com tampo de vidro, que me restou em processo de execução, após o exequente ir a Taboão da Serra, buscar bens penhorados que encheram um caminhão. Adorei a mesinha meio detonada, mas de muita serventia e que, há vinte anos, é pau pra toda obra. Hoje ela ampara vasos de plantas, na garage da casa nova. Ao me tornar doutora, ouvi que tinha de fazer clínica geral, ou seja, advogar em todas as áreas. Isso não combinava comigo. Como iria dar conta, com responsabilidade, de problemas jurídicos diversos e ainda lecionar, sobretudo redação, o que exige muito empenho e tempo? Até tentei cível e penal, mas o primeiro processo-crime já me mostrou que não saberia defender alguém escancaradamente culpado. O máximo que consegui, nesse caso, foi amenizar a pena, graças a argumentos e provas de problemas psicológicos. Justo hoje, Dia do Advogado, em que a Oração dos Moços, de Ruy Barbosa, enfatiza tão bem o papel do advogado, na sociedade, a TV noticia: em Sorocaba, um peruano, técnico de radiologia, foi preso, por ter gravado, com câmeras instaladas até em ralos, pacientes de todo naipe, trocando de roupas, usando o sanitário etc. A namorada afirma ser ele um cara tranquilo, amável, de quem jamais imaginaria tal conduta. Por mim, se tivesse que fazer a defesa dele, solicitaria exame de sanidade mental e torceria para que fosse detectado distúrbio grave. A livre convicção é essencial para nossa lida. Embora a Constituição reze que todo cidadão tem direito à defesa, eu, de fato, perderia o sono, se tivesse que defender o autor dessa aberração ou quaisquer outras, como jogar um bebê pela janela, bater em idosos, assassinar pais, para herdar fortuna, e demais horrores que requerem sangue frio. PUBLICAÇÃO NO EDIÇÃO EXTRA DE 16/8/14

sábado, 9 de agosto de 2014

Patente de pai

Patente de pai Se pudesse criar uma patente de pai, eu o faria rapidinho. Inscreveria meu saudoso pai, Danilo Bohn Prado, como produto único. Dizem que filha idealiza o pai como modelo de homem. Até concordo, mas isso não me abala. Mesmo porque distingo o que ele tinha de fantástico (até no nome: Bohn) e o que tinha de quase bom, pois algumas arestas precisavam ser ajeitadas. Pouca coisa a mexer, para ele ser “dez”. Paciência, meu pai tinha de sobra. Pequenina, convivi com esse retrato consubstanciado na confecção anual de balões, em agrado à amada junina, mamãe. Eram perfeitos, delicados, papel de seda com dobrinhas milimetricamente calculadas, cola na dose certa, decoração criativa – a cada primavera de mamãe, dizeres diferentes no conteúdo e na forma. Como à época não havia proibição, soltá-los era uma festa. A paciência permeou a vida dele toda. Talvez porque fosse exímio adestrador e pescador, era capaz de passar horas a fio, sentado, calado, em vigília, ao lado de um doente da família. Meus “pepinos” de saúde foram amenizados por sua presença amorosa. Também lhe devo lições que me acompanham vida afora, como enxugar o vão dos dedos do pé com rolinho de papel higiênico e segurar o queixo, para não dormir de boca aberta... Na hora dos pesadelos escolares, ensinou-me a deslindar problemas de matemática: “Um tanque tem duas torneiras, uma despeja tantos litros por hora, outra..., em quanto tempo o tanque estará cheio?” Assim, deixou-me afiada para o terrível exame de admissão ao ginásio. Outro retrato de paciência: embalar nenês no carrinho ou segurar-lhes a mãozinha, até que dormissem, ou ensiná-los a andar, no que passava horas, sem nenhum sinal de cansaço; fazer-lhes garrafinhas do gomo da laranja, oferecer-lhes uvas descascadas e sem semente e muito mais. Segurança da presença silenciosa. Meu pai não precisava dizer absolutamente nada, para transmitir confiança, acolhida, apoio. O olhar firme, as mãos fortes, o porte de lorde ou poeta ou filósofo – tinha de tudo um pouco -, apenas ajudavam a pintar o retrato. O interior de meu pai, isso sim, transbordava segurança. Contava-se com ele. Caráter reto iluminava sua face. Solidez de princípios tornavam suas atitudes coerentes até demais. Outro dia contei, aqui, que papai, congregado mariano, deixara de comungar, porque ele e mamãe precisaram evitar filho, renunciando ambos à eucaristia, até a morte. Infalível nos deveres, era pontual em tudo e prezava a “satisfação”, quando não pudesse cumprir algo. Esperava o mesmo dos outros... Perseverança, uma lição que nos deixou, para conhecer o progresso. Adolescente, órfão de pai, estudava à noite e trabalhava durante o dia. Sua carreira de bancário deve-se aos cursos de aprimoramento feitos com bastante sacrifício: contabilidade, taquigrafia, inglês, português, alguns por correspondência. Arestas a serem aparadas, papai as tinha, por força da genética alemã. Uma delas era-lhe constrangedora e, por extensão, a nós todos: a dificuldade de dar beijos e abraços. Mas eu via carinho sem tamanho em outros mimos dele, como me acordar com café com leite espumante. Outra aresta era o excesso de reserva e exigência com ele próprio, ou seja, “polícia 24 horas”. Herdei muito disso, o que me dá um trabalhão. É preciso balancear certas facetas nossas, para não sofrer ou fazer sofrer. A descrição do “pai” que gostaria de patentear encheria mil laudas. Como o espaço no Cotidiano é exíguo, arremato: meu pai, sério ou alegre na medida certa, é produto cada vez mais raro, não só pelo amor consagrado à família, mas pelo legado dos legados – o nome honrado e a educação através do exemplo. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br

sábado, 2 de agosto de 2014

Vovozado

Vovozado Hoje, 26 de julho, é Dia dos Avós; portanto, meu dia, seu dia. Segundo a história, Santa Ana e São Joaquim, pais de Maria e avós de Jesus Cristo, são nossos padroeiros. A data da celebração passou por várias alterações, até o papado de Paulo VI, a quem é atribuída a inserção no calendário atual. Para mim, o vovozado começou faz tempo. Num aniversário meu, vinte e oito anos atrás, ganhei bombons, com um cartãozinho: “Parabéns, futura vovó!”. Desde então, a fila puxada por Bruna encompridou. São quatro netos – três meninas e um garoto - todos bem crescidos, lindos, inteligentes e tudo de bom que olhos de avó enxergam. O melhor, trazem alegria a esta fase de futuro curto. Retribuo-lhes, com amor pintado de mimos e experiências. Na verdade, jamais esqueço que sou avó. Se vejo algo que lembre algum (a) neto (a), pronto! Já me ponho a pensar no seu jeito, seu cheiro, seus carinhos. E quando eles vêm me ver ou vou a eles, aí é uma maravilha! Neste ano, entre março e julho, tive a visita dos quatro, um por vez. Em março, num fim de semana relâmpago, Bru veio despedir-se, antes de alçar voo, para estudar, passear e também encontrar-se com seu amor. Apesar de pouquíssimo tempo, até baile fomos; Bru, toda bela, parou a festa. Em abril, Lu voou do nordeste para cá. Peguei-o em Campinas, todo importante, mochila nas costas, carteira de homem, o retrato da independência. Fomos à Milk Moni, ao Bedrock, batemos muito papo e, de quebra, paciente, deu-me dicas de informática. Ah, Lu trocou lâmpadas pela primeira vez na vida. E na minha casa. Creio que guardará essa experiência bem guardadinha, para contar aos filhos dele... O tempo foi pouco, mas rico. Em junho, foi a vez de Lê voar sozinha, para visitar os três avós. Ficou uma semana aqui. Logo na chegada, estendeu-me, meio tímida, um embrulho de papel-bolha. Ansiosa, só sossegou quando abri o presente - uma cumbuca rosa e branca, pintada por ela. No fundo os dizeres: “Vovó Inês, te amo. Lê -2014”. Diante de carinho de neto, impossível evitar o core acelerado. Lê quis ajudar-me com meus livrinhos, mais de duas centenas, para carimbar o registro dos direitos autorais, embalar em saquinho plástico e lacrar. A jeitosinha passou tardes inteiras nessa “brincadeira”. Se dependesse dela, não faria outra coisa. Não sairia nem para a festança de São João, vestida a caráter, em tons de branco e lilás. Por fim, disse que queria trabalhar com carimbos, pode? Mas também quer ser aeromoça, professora, comerciante etc. Foi uma companheira e tanto que me veio da Bahia. Pôs-me roupa no varal, recolheu-a, ajeitou a cama e as coisas dela, como uma mocinha. No dia em que a levei a Viracopos, meu coração ficou apertadinho. Entregá-la nas mãos de estranhos, ainda que da companhia aérea, foi um sufoco. Mal me aguentava de pé, ao dar as costas para vir embora, pedindo ao bom Deus que a protegesse, até chegar às mãos dos pais. E neste meado de julho, matei a saudade de Manu, moreninha brejeira. Embora os pais e ela ficassem numa pousada, tivemos chance de partilhar coisas simples e gostosas, como os animaizinhos na SES – coelhos, patos, gansos, passarinhos, galinhas e muito mais. Manu é boa ajudante na cozinha. Sua salada de frutas é perfeita, tudo cortado miudinho, uma delícia. Adora enfeitar pratos e ama agulha e linha, até me fez uma bonequinha de pano. O que quero mais? Curtir muito meu vovozado, enquanto Deus permitir... minesprado@gmail.com Rabiscos de Minês:minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 26/7/14

O que é ser útil

O que é ser útil Tem rodado muito na internet um vídeo do padre Fábio de Mello, abordando a utilidade das pessoas... Há pouca novidade nas palavras do padre, mas sempre é “útil” rever certos aspectos desta vida, no caso, relações estabelecidas entre humanos, em função da serventia de cada um. Como, sábado passado, escrevi gostosamente sobre meu vovozado, nada mais natural que eu o ligue à utilidade do idoso. Com que olhos essa questão é vista? Creio que depende muito do olhar - se de uma criança, um jovem ou um adulto. Idosos, de modo geral, são pacientes, adoram contar histórias e ensinar brincadeiras às crianças, razão pela qual muitos acabam como babás dos netos, sendo “utilíssimos”. Mas, quando se negam a tal, são úteis para a família? Provavelmente, não. São estorvos e, talvez, desencaminhadores dos netos, já que avós têm um jeitinho especial de deixar neto fazer o que quer, e até são coniventes nas infrações dos pequenos. Queria estar errada, mas parece rarear um idoso “inútil” que seja querido pelos seus. Não sei se a razão são as profundas mudanças no mundo: o perfil pai/provedor, mãe/dona-de-casa já era, as casas ficam vazias a maior parte do tempo, pois cada um vai para um lado, o dia passa com raros encontros da família. Então, o idoso vai ficar com quem? Fazendo o quê? Vira pacote pronto para passar às mãos alheias, sejam de profissionais, sejam de amadores. Mas deixemos a questão idoso/família de lado e vejamos o relacionamento idoso/amigos. Se o idoso é ativo, bem de vida, mesmo que ranzinza, terá um exército de amigos da mesma faixa etária, pois é quase uma utilidade pública: para os amigos e também para o governo, porque não pesa no sistema previdenciário. Ele se cuida, faz musculação, come do bom e do melhor, dirige, compra/vende, viaja, é livre pra fazer o que lhe der na veneta, até para meter a mão no bolso. E a bengala? Ora, em velho rico, a bengala é charme. Se o idoso, ainda que ativo, for um pé rapado, a realidade é outra. É provável que fique enfurnado num cantinho, falando com as paredes. Dificilmente receberá visitas. Sua utilidade só não será zero, se for ótimo em trabalho voluntário ou em jogos de tabuleiro e carteado. Então, seu mundo se ampliará nas instituições de comadres/compadres ou pracinhas, pois bom parceiro é sempre útil. Será que o idoso faz amizade com jovens? Por ele, sim, mas quais jovens querem saber de papo de velho? Poucos valorizam a experiência dos anos. De modo geral, para a moçada, velho é sinônimo de chatice e reumatismo. Retomando o vídeo do padre Fabio de Mello, é melhor esquecer a nossa utilidade ou inutilidade e viver a doce vida. Se puder ser ao lado da família, mesmo que nos pinte assim ou assado, melhor. E, claro, ao lado dos amigos do peito ou nem tanto. Porque, se formos esmiuçar se prestamos ou não para alguma coisa, se somos úteis pelo nosso bolso ou pelo nosso coração, esqueceremos o azeite da máquina que já começa a emperrar. Deus nos livre! minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br Agosto/14 publicação no Edição extra de 2/8/14

sábado, 5 de julho de 2014

IGREJA EM TRÂNSITO

Igreja em trânsito Domingo, dia de são Pedro, a Folha publicou editorial – Igreja em trânsito - sobre as mudanças que a igreja católica pretende realizar, após pesquisa junto às dioceses, em que religiosos e católicos praticantes opinarão sobre temas polêmicos; ex.: o filho adotivo de casal homossexual faz jus ao sacramento do batismo, através do qual se torna filho amado de Deus? Tive pai “congregado mariano” e mãe “filha de Maria”, seguidores fiéis do catolicismo. Por isso, em termos de controle da natalidade, aplicavam a “tabelinha” , ou seja, faziam amor de acordo com o ciclo menstrual, a fim de não povoarem o mundo aleatoriamente. Como nem sempre a prevenção dava certo, mamãe teve sete gravidezes, cinco das quais vingaram. A prole de três homens e duas mulheres estava de bom tamanho. Impossível aumentá-la. Então, já que a tabelinha era falha, optaram por outros meios anticonceptivos, direito deles, mas contra as diretrizes de Roma. Resultado: por questão de coerência, afastaram-se da comunhão, pois viviam em pecado permanente, sob o prisma religioso... Um absurdo! Jamais engoli a ideia de que um casal amoroso, dedicado totalmente à família, fosse pecador por uma questão de foro intimo, como bem expressa o editorial da Folha de 29/6/14. Meus pais tiveram uma vida bastante sacrificada, proporcionando aos cinco filhos tudo de essencial para o bom desenvolvimento do individuo. Nossa mesa era farta, nossa saúde, zelada, nosso estudo (a maior parte em escola pública) foi de boa qualidade. Todo mundo foi batizado, fez catecismo e crisma,como manda o figurino católico. Mamãe e papai, mesmo tendo família numerosa, eram solidários e caridosos não apenas com vizinhos, amigos e estranhos, mas com a parentada toda. Então, como aceitar que se “punissem” por evitarem mais filhos? Lembrando o sermão do padre, neste dia de são Pedro: como aceitar que vivessem num martírio branco*? Não aceitava e não aceito até hoje. Após a chegada de Francisco, o papa das mudanças, vejo que estou certa, ao viver, prioritariamente, segundo minha consciência. É o que meus pais deveriam ter feito. Mas não. Dois seres absolutamente cristãos optaram pelo caminho espinhoso: a renúncia ao sacramento da comunhão, não somente enquanto mamãe era fértil, mas pelo resto da vida, já que julgavam atitude hipócrita o retorno à eucaristia. Comemoro, mesmo, a vinda de Francisco e sua visão objetiva do sofrimento imposto àquelas ovelhas desgarradas por falta de opção. Nos últimos anos, vimos avanços discretos para aliviar católicos de certos absurdos, um deles a condenação ao limbo (ausência da Luz Divina), por falta de batismo. Que culpa tem um recém-nascido de morrer sem ter sido batizado? Nenhuma. Estranho que tal aberração contra um ser indefeso, tida como “questão teológica” no documento que a eliminou em 2007, sob o papado de Bento XVI, tenha sobrevivido por tantos séculos. É um alivio a constatação de que, finalmente, o catolicismo tem olhar compassivo para divorciados, homossexuais e seus filhos adotivos, controle da natalidade, prevenção da AIDS e outros impasses vivenciados por aqueles que, compulsoriamente, têm atravessado a vida como ovelhas desgarradas. Que a Igreja de Pedro, “porteiro do reino dos céus”, remodelada sob a égide do promissor Francisco, seja sinônimo de conforto e apoio, agasalhando e norteando, amorosamente, todo cristão que a ela recorrer, em quaisquer circunstâncias. *Martírio branco: sofrimento interior, por amor a Deus. Julho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 28 de junho de 2014

Saõ Pedro único

São Pedro único _Amanhã preciso ir a Monte Santo. Minha mãe faria cem anos. Vou levar-lhe flores. Você vai comigo? – pede o homem. _ Claro, será gostoso, ainda mais que o tempo está ótimo – retruca a moça. _ Ah, esqueci, amanhã não posso, marquei hora com a imobiliária à tarde, lamenta-se ele. _ E daí? Bem, só você pode saber o que é mais importante pra você – pondera a moça, clara, mas sutil... Seria ele o mesmo homem que, na véspera, recordara o tempo de menino, soltando pião para lá e para cá, divertindo-se com as proezas para as quais ainda levava jeito? O que a vida fazia com as pessoas? Para ele o pião parecia um velho companheiro, mas, paradoxalmente, a importância de certas coisas estava meio embaralhada. O mundo adulto é bem complicado. _ É, são coisas diferentes _ ele quase engole as palavras, despedindo-se _ Qualquer coisa eu ligo. Dali a quinze minutos o telefone toca: _ Oi, resolvi, amanhã vamos a Monte Santo. Passo aí às 9h, ok? Às 9h?? Mas já são 3h da manhã! _ Ah, não pode ser às 10h?... _ pede a moça, com jeitinho. _ Claro, dorminhoca, uma hora a mais, uma a menos, se não der pra ir à imobiliária na volta, paciência. Finalmente, seria uma boa noite ,ou melhor, uma boa madrugada para ambos, com muitos sonhos, cada um na sua casa. Nenhuma pendência. O dia de são Pedro, 29 de junho, amanhece espetacular, céu azul, um verdadeiro convite para sair estrada afora. E lá vai o par, feliz da vida. O homem recorda. Durante anos preparara a festa na roça, festança dupla: para são Pedro e para a querida mãe, mesmo depois que ela se fora. Bandeirolas, tochas, quentão, tudo de gostoso, sem faltar o sanfoneiro. Mas ultimamente desanimara, não sabia o porquê. Fazia anos que a data passava em branco. Uma curva da estrada revela Monte Santo de Minas. Seguem direto para o cemitério municipal. A dificuldade de sempre para achar a campa da família, entre as centenas com nomes italianos, numa demonstração do tanto de imigrantes que se fixaram na região. Ela o ajuda, já o tinha acompanhado uma vez até lá. _ É esta aqui _ ela aponta. No céu e na terra acontece um são Pedro único. Nas alturas, dona Maria, sorridente, recebe o perfume das flores brancas que o filho lhe traz. Ele senta-se sobre a lápide. Lágrimas discretas rolam, enquanto conversa com o Além. A moça assiste ao momento que não se pode dividir com ninguém – o da dor que não tem idade, a dor da orfandade. Deixam o cemitério renovados. Ele, agradecido por participar do centenário de sua dona Maria. Quem sabe as flores brancas fossem pipocas lá em cima... Ela, feliz por estarem juntos naquela hora tão especial e que jamais se repetiria, salvo em outros montes... A fome bate. Param o carro. Enquanto procuram um lugarzinho para comer, ele vai assinalando a igreja em que fora batizado, a casa em que a família crescera, a rua principal. Vê gente que talvez seja do tempo dele. Decide conferir. A moça afasta-se, sob o pretexto de comprar uns cartões. Ele volta animado. Acaba de conversar com uma velha conhecida. Logo descobrem uma casa de massas onde o cardápio é promissor. Encomendam meio quilo de canelone. Uma mesinha é improvisada. Em poucos minutos, deliciam-se com o melhor canelone de ricota de suas vidas.Há coisas de que se tem absoluta certeza... Um senhor meio alquebrado entra na rotisserie. Será algum amigo dele ou de seu falecido pai? O senhor indaga quem viera visitar a mãe no cemitério local. Em cidade pequena as notícias correm. A conversa se anima, descobrem que tinham sido parceiros de futebol, e pronto. Volta-se à realidade, já que é melhor falar da Copa do Mundo do que descobrir os tantos que já se foram daquele timaço da infância... Despedem-se, com a promessa de futuros encontros, aqueles que a gente promete, mas raramente cumpre. Sem pressa, com a alma leve, o homem e a moça pegam a estrada de volta. São Pedro deve ter ficado alegre com essa comemoração excepcional e cheia de significados. Um dia único em Monte Santo de Minas, do qual resta a saudade. minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br publicação no Edição Extra de 28/6/14 (redigido em 2003)

domingo, 22 de junho de 2014

Jogo de empurra

Jogo de empurra Certas características do povo brasileiro ganharam fama e deitaram na cama. Dentre elas, a eterna mania de jogar a culpa no outro, por qualquer coisa errada que aconteça, seja na família, no grupo de amigos, na vizinhança, no trabalho, no hospital, na escola ou no serviço público. * _ Maricota, o arroz tá empapado – reclama o “patrão”. _ Ah, sabe por quê? Pra variar Nica veio pedir açúcar emprestado. Você conhece bem a Nica - fala mais que a boca. E o arroz lá no fogo... * _ Mãe, olhe, já disse: não fui eu que joguei a toalha no chão, foi o Pipoca que usou o banheiro. Pô, mãe, tudo nesta casa é minha culpa! Já tô... * _ Zé, pelo amor de Deus, cortaram a luz! Quantas vezes já lhe implorei que pague as contas em dia! Tenho uma pilha de roupa pra passar! – choraminga a mulher ao celular. _ Caramba, Dilminha, lá vem você com suas acusações! Eu já lhe expliquei que a nova secretária é desencanada: confere a agenda para “ontem”. Dá nisso. Olhe, mando pagar já, viu? Fica calma. Vai passar minhas camisas na vizinha... * _ Menino impossível! Já falei pra parar de jogar bola na calçada! Dona Maria veio, novamente, reclamar das boladas nas plantas dela. _ Mãe do céu, não fui eu, foi o Zezinho, aquele perna de pau não acerta uma. * _ Senhores Vereadores, a novela do IML é desmoralizante. Cada mês que comparecemos à Câmara ouvimos uma desculpa: ora é a reforma que ainda não acabou, ora é o concurso para médicos legistas que não aconteceu, ora são os legistas que se aposentaram ou os novos que pediram transferência pra Caixa-Prego (tecendo pauzinhos, claro!), ora é o prefeito que não atende aos edis, para a reunião solicitada, ora é por culpa exclusiva do Estado, pois o Município nada tem a ver com a questão. Basta, senhores! Se o IML não funcionar incontinenti, faremos greve de cidadania! No cotidiano convivemos com o “tirar o corpo fora”, em todo lugar, inclusive escolas, pronto socorros e hospitais. É o papel de bala jogado “pelo outro”, no chão da sala de aula; é o médico que cancela as consultas do dia, por conta de uma emergência (“emergência” é sinônimo de salvadora da pátria), e por aí vai. Nos meses que antecederam a Copa do Mundo, as desculpas e culpas do outro choveram na mídia escrita e falada. Obras inacabadas, acidentes de trabalho nas mesmas, enfim, um quadro caótico por culpa da empreiteira, da chuva, do vento, do cisco no olho do funcionário, de qualquer coisa, menos dos responsáveis. Michel Kepp, americano radicado no Brasil, jornalista, autor de “Tropeços nos Trópicos”, Editora Record, 2011, passeando pelas contradições culturais entre Estados Unidos e Brasil, fala do “jeitinho” brasileiro que contamina a maioria do nosso povo. Eu diria que é mal sem remédio, tão enrustido na sociedade que não surpreende. E diria também que o “jogo de empurra”, ou seja, não assumir responsabilidades, mas transferi-las a terceiros, faz parte desse “jeitinho” que, desconfio, é genético. Nota-se que, em algumas famílias, jogar a culpa pra cima do outro é absolutamente normal no convívio entre pais e filhos, gerando um clima de acusações mútuas insuportável: a criança vai à escola sem uniforme porque “mamãe não lavou a blusa”; a mãe não lavou a blusa porque, na véspera, ao chegar da escola, a criança não trocou de roupa – foi direto pra casa do amigo. Quem já não ouviu essa ciranda? Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 21/6/14

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Rainha sem cetro e coroa

Rainha sem cetro e coroa Quem não se recorda do colchão de palha, da cama de vento - aquela dobrável -, do estrado de molas etc. e tal? Pois é, na juventude topávamos qualquer canto, para descansar nosso esqueleto saudável, todo ajustadinho. Mas, depois de certa quilometragem rodada, nossa coluna começa a resmungar. Então, a gente percebe que não é nenhum luxo a necessidade de cadeiras de ângulo reto, pernas e encosto de acordo com nossa altura, e o mais importante - colchões adequados e firmes. Sofás nem pensar; só se forem paras as visitas. Simples, não? Nem sempre. A questão é que, quando vamos pra longe do nosso cantinho, pode-se levar travesseiro, mas não dá pra carregar o resto nas costas. Aí começa o imbróglio, ou para ser franca, a via sacra: o que fazer, para aguentar estadias fora de casa ou curtir/suportar eventos prolongados? Se vamos passar dias com a família, dá para pedir, com jeitinho, que nos arranje um colchão firme. Geralmente é só roubar o do neto ou da neta, e tudo bem. Cadeira também não é problemão, a gente adéqua. Almofadas existem pra quê? Para amparar nosso lombo. Já, temporada em hotéis exige boa vontade e interesse por parte dos hoteleiros. E não se surpreendam, caros leitores: ainda há muita gente nota dez preocupada com nosso conforto. Há meses fiz reserva numa pousada em Paraty e solicitei colchão firme, tudo via internet. Foi tanta troca de e-mails que, confesso, fiquei sensibilizada. Primeiro, informaram que só tinham colchão de molas, mas providenciariam um de espuma firme. Só queriam saber se poderia ser para cama de solteiro. Depois, descreveram-me as opções da única loja da cidade no ramo. Densidade X, Y, ou Z, qual era a minha preferência? Dá pra crer? Escolhi a densidade, encantada com tanta deferência. Nessa hora é que se percebe o grau da nossa carência. Encantamo-nos com pouco... À época da viagem eu estava leve, só de pensar que meu bem estar no paraíso litorâneo estava garantido. E como! Melhor impossível. Mal cheguei a Paraty, o proprietário, um francês amável, logo quis saber se eu estava satisfeita com o colchão e, com minha confirmação, ainda comentou que era ótimo ter providenciado um, pois outros hóspedes poderiam usufruí-lo. Vejam o nível desse empresário! Faz toda a diferença, concordam? Aqui na terrinha há um local que frequento, vez em quando. Um belo dia resolvi me queixar das minhas dores, por causa da cadeira baixa, encosto inclinado, um horror. Era tão inadequada que eu não achava posição! Para minha surpresa, conseguiram-me uma cadeira de ângulo reto e, ainda por cima, estofada! O engraçado é que o pessoal já se programou para colocar a cadeira para mim. Eu vá ou não vá ao tal lugar, a cadeira está lá, reservada, como se reserva assento vip. Desse jeito, a gente até acaba acreditando que, esporadicamente, é rainha por alguns dias ou horas, mesmo que sem cetro e coroa... Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sexta-feira, 13 de junho de 2014

THEATRO MUNICIPAL, PÉROLA CENTENÁRIA

Maria Inês de Araújo Prado, santista e sanjoanense, professora, advogada, membro correspondente da Academia de Letras de São João da Boa Vista, escritora, colaboradora eventual de jornais locais e outros; cronista do Edição Extra, desde 2006. Theatro Municipal, pérola centenária A origem da dramaturgia é primitiva, o que demonstra a importância da teatralização. Segundo estudiosos, o teatro – theátron - tem origem na Grécia Antiga (século VI, A.C.), sendo a arte de representar uma das formas mais originais e ricas de perpetuação da história dos povos. Graças ao teatro, William Shakespeare, o gênio, e outros grandes da dramaturgia e da literatura mundial se mantêm vivos, estudados e apreciados por gerações inteiras. No Brasil, o teatro foi introduzido pelos jesuítas (1564), pois viam a dramaturgia como meio eficaz de catequização dos índios, que já se deliciavam com a música e a dança, ótimos complementos da encenação. Assim, é justo inferir que nossas primeiras “produções” foram de cunho eminentemente religioso, como os clássicos “autos”. *** Quando vim de mudança para esta terra que tanto amo, São João da Boa Vista, sabia que um dos meus entretenimentos estava garantido. Mesmo ciente de que o Theatro Municipal fora desativado, à espera de restauração, eu comemorava as oportunidades vindouras de deliciar-me com a sensação indescritível que me toma inteira, quando vou assistir a uma peça. Sensação essa que começa nos preparativos, expande-se na chegada ao teatro, aprofunda-se à medida que mergulho na trama encenada (digo trama, pois é minha preferência), prolonga-se espetáculo adentro e povoa meus sonhos. Digamos que o teatro me leva a flutuar. Nunca atuei num palco, mas percebo ali a grande chance de o ser humano manifestar emoções escondidas ou sublimadas. Assim, alguém que seja muito passivo, aqui fora, pode liberar, no palco, agressividade inusitada. Uma atriz pode incorporar uma professora, uma freira, uma psicóloga, uma chefe de estado, uma amante ou qualquer outro papel que talvez satisfaça aspirações jamais vivenciadas no dia a dia. A restauração do nosso Theatro Municipal durou anos, como poderia contar o Carlos Gomes quase imperceptível, pintado no teto. Acompanhei o processo de restauro, par e passo, ansiosa para ver tudo resplandecente e a plateia lotada. Enquanto tal não acontecia, tive o prazer de sugerir, a alunas do Externato Santo Agostinho, uma visitação ao local em reforma, seguida de relato sobre a experiência. O interesse delas foi tamanho que até me causou alguma preocupação. Lembro-me, como se fosse hoje, das meninas exibindo amostras do piso do teatro devidamente etiquetadas, além do relatório minucioso em que incluíram suas peripécias, como subir escadas altíssimas e conversar com pedreiros que lá trabalhavam. De imediato, meu instinto maternal me fez imaginar os riscos que correram. Ainda bem que os anjos da guarda das arteiras tinham estado de plantão! Dei graças por tudo acabar bem, sem sobrar algum problemão para mim, embora eu não tivesse mandado ninguém subir escadas... Ainda conservo alguma coisa desse material, prova da visitinha das alunas nota dez – turma de 2001: amostra do piso de 1986 e a do que o substituiu, além de um fragmento da estátua do saguão. Reinaugurado o teatro, mesmo sem estar completo, vieram as batalhas para angariar recursos que possibilitassem seu término. A criação da AMITE (Associação dos Amigos do Theatro), em 2003, colaborou, e muito, para a reativação do espaço precioso. Programação eclética passou a movimentá-lo, regularmente. Poucos eventos teatrais, para minha decepção, mas muita música, dança, canto e o melhor, a Semana Guiomar Novaes. Esse evento cultural, considerado o segundo mais importante do Estado de São Paulo, é aguardado pelos sanjoanenses com muita expectativa, pois, além de honrar a pianista mundialmente reconhecida, proporciona música de qualidade aliada a artistas de renome. Ano a ano, o cronograma do Theatro tem sido incrementado, com festivais e semanas específicas, em homenagem a artistas locais, como Semana Assad, Festival de Teatro Atílio Gallo Lopes e, agora, Semana Gavino Quessa. Outros eventos de porte acontecem, como a Semana da Educação, com palestras que lotam a plateia. Ressalto que o Theatro Municipal não é um mero teatro, neste Brasil. É uma obra especialíssima, pois gente de peso que tem o prazer de pisar naquele palco é pródiga em elogios, quanto à acústica perfeita, além de enfatizar a beleza delicada da forma e do acabamento da casa de espetáculos que, regularmente, brinda São João da Boa Vista e região, com entretenimento, cultura e emoção ímpares. Impossível ignorar que uma filha desta terra foi grande incentivadora do teatro amador em Santos, como testemunha o escritor santista Pedro Bandeira, em O fototeatro de Plínio Marcos (Folha de S. Paulo - 30/3/2014): ‘No final dos anos 50 e inicio de 60, vivi o teatro amador em Santos, como companheiro e ator de Plínio Marcos e sob o incentivo de Pagu, a Patrícia Galvão.’ Assim, seria justo que a emblemática Patrícia Rehder Galvão (1910-1962) “aparecesse” nalgum cantinho dessa pérola centenária e digna de muito zelo, nosso Theatro Municipal, patrimônio indispensável à difusão das artes e da cultura. Junho/14 M. Inês Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 7 de junho de 2014

DOIS NA BOSSA: ELIS E JAIR

Dois na Bossa: Elis & Jair Manhã de 19 de janeiro de 1982. Eu estava curtindo a Pauliceia, na companhia de minha tia, na Rua Martim Francisco, bairro Santa Cecília. Logo cedo, após o café, era de praxe assistir ao noticiário matinal. E então a notícia da morte de Elis Regina deu-nos um supetão, pondo nosso dia de pernas pro ar. Como? Por quê? Inacreditável que a pequena esfuziante, polêmica, de apenas 36 anos, partisse assim, no auge da carreira, sem mais nem menos. Perdas trágicas sempre são questionadas. Afinal, Elis esbanjava vida, ela e seu sorriso espontâneo. Quem sabe sofresse de tristeza trancada. O Brasil lamentou, chorou. Vivíamos ainda o Estado de Exceção, instalado no país com o golpe de 1964. Período que a gaúcha Elis não deixou passar batido. A seu modo, esperneou, através da sua voz marcante, interpretando composições que falavam de infância, de cores, de armas e flores. Hoje, domingo, 1º de junho de 2014, ouço um exemplar de “O Melhor de Elis” (coleção da Folha de S.Paulo): o CD Dois na Bossa, gravação ao vivo do show de Elis e Jair, no Teatro Paramount, em 1967(São Paulo). O repertório todo tem conotação com perdas: _ Enquanto a nossa meta não for atingida, Continuamos gritando o nosso canto, Enquanto nossa música não voltar ao que é, Nós lutamos, faz escuro, mas nós cantamos, O amanhã tá breve, Vamos cantar logo, logo, O que é nosso, Porque mais que nunca é preciso cantar o que é nosso!...(“Imagem”, de Luiz Eça e Aloysio de Oliveira) _ A minha música não traz mensagem, E não faz chantagem ou guerra fria, E nem fala em ideologia, Eu vim apenas para lhes falar De uma grande perda, Que nem sei se é da direita ou da esquerda, E o que me importa se a censura corta, Pois eu gosto dela se é vermelha Ou se é verde e amarela... (“Manifesto”, de Guto e Mariozinho Rocha). Trinta e dois anos se passaram. As letras interpretadas por Elis e Jair, em Dois na Bossa, são instigantes. Repensa-se a Pátria, repensa-se a cidadania e a vida. Elis foi-se muito cedo. Será que vislumbrou o país nos trilhos da plena democracia? Jair acaba de partir (8/5/14). Conferiu e vivenciou um Brasil modestamente equilibrado, mas deve ter levado algumas preocupações com ele. Irreverente, brincalhão, talvez paire por aí, cantando algo assim: Brasil, vença a Copa, Depois, mãos à obra! Veja se topa Endireitar de vez: Educação, saúde, segurança, habitação E todo o resto, Sem deixar sobra. Saiba, meu povo: Daqui do andar de cima, Planto bananeira, À minha maneira, De olho bem aberto em vocês. Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 31 de maio de 2014

COMPORTAMENTOS NO THEATRO MUNICIPAL

Comportamentos no Theatro Municipal Em palestra recente na Flipoços 2014, Mario Sergio Cortella, filósofo, escritor, educador, palestrante, professor universitário, ressaltou a importância da nossa atitude “ornar” (expressão mineira). Mas ornar com quê? Verbo transitivo indireto requer complemento, não é? Assim, nossa atitude tem que ornar com algo. Na verdade, Cortella quis ser poético, ao falar de adequação da conduta às situações no nosso viver. Nesse sentido, penso que cursos de comportamento fazem muita falta, pois no cotidiano vemos coisas do arco da velha, isto é, absurdamente inadequadas, em que nada orna com nada. Na terrinha, o fim de semana passado foi agitado pela Virada Cultural, parte do cronograma estadual que tem brindado diversas cidades com programação eclética, durante 24 horas ininterruptas. Na Virada, toda faixa etária tem opções de entretenimento, tanto no Theatro Municipal como ao ar livre, em vários locais, com prioridade para o Largo da Estação. Só gosto de comentar o que meus olhos veem. Assim, atenho-me à postura do público, em duas belas apresentações que conferi no Theatro Municipal: Cia. de Dança, no sábado, e Dança Flamenca, no domingo. Pra variar, levanto a questão das benditas maquininhas que se apoderam do nosso tempo e invadem todos os ambientes, sem exceção. Como é possível curtir o que se passa no palco, numa boa, com braços que se erguem aleatoriamente na plateia, para captar fotos e fazer vídeos? Como é possível o artista ou o grupo artístico se concentrar no desempenho, com flashes batendo, impiedosamente, nas suas caras (“faces” é mais bonito!), atrapalhando-lhes a visão e interferindo até na iluminação do palco? Para não perdermos lances do espetáculo, nosso pescoço passa por uma sessão involuntária de alongamento pra cá e pra lá, graças aos espaçosos de plantão, inclusive alguns fotógrafos de jornais sanjoanenses. Eles deveriam ser os primeiros a dar o exemplo, ao fazerem seu trabalho. Há várias alternativas para tal, sem atrapalhar o espectador. Maquininha de amador acionada a torto e a direito, durante eventos, virou febre. Homem, mulher, criança, todo mundo a postos, brincando de fotógrafo. E, claro, conectados, partícipes da gincana virtual, com postagens imediatas. Como se não bastasse essa perturbação toda, temos lá os casais trocando amassos desastrados, num incansável passa-passa de braços, os quais, quase sempre, relam em quem está atrás ou ao lado, além de mãos inquietas a apertar daqui e dali, a alisar orelhas, cabelos, nucas etc. Entre um amasso e outro, cabeças que se encostam , desencostam, entortam, para troca de beijos sem poesia. Pura fazeção de coisas que nada inspiram. Nem causam inveja... Quem tem estômago para apreciar um espetáculo nessas condições? Ninguém. Apenas, as reações divergem. Uns, incomodados com o péssimo comportamento dos vizinhos, seguem a máxima “Os incomodados que se mudem.”, levantam-se, furibundos, e procuram outro lugar. Outros trancam a cara, resmungam, cutucam as cadeiras dos inoportunos. Pior ainda, outros se mandam impetuosamente, tropeçando nos degraus (um defeito grave do nosso teatro), e abandonam o local. Reclamar pra quem? Ressuscitem-se os lanterninhas, aqueles do “nosso tempo”, que, sorrateiramente, focavam os arteiros, achegavam-se e, com um simples toque, impunham respeito. Se não eram acatados, convidavam o malcomportado a se retirar do recinto. Seguranças plantados nos corredores laterais têm outra função, como inibir badernas e brigas; não os substituem. O Cortella fala de “ornar”, lindo vocábulo! Então, fica aqui uma pitada de mineirice: comportamentos como os acima descritos ornam com o Theatro? Junho/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br

sábado, 10 de maio de 2014

AS MÃOS DE MINHA MÃE

As mãos de minha mãe Mãe, Aceitei sua partida, Porque faz parte da vida. Mas seus últimos dias De terrível sofrimento, Isso jamais aceito. Quero falar das suas mãos, Não das que, inertes, pareciam pão: Sabe, mãe, aquele pão Que você fazia, Pondo uma bolinha No copo d’água fria? Assim que ela vinha à tona, Você, cheia de graça, Ligeira, trabalhava a massa, Modelando pães perfeitos, Pincelados de fina gema. Mãe, esse era seu jeito. Sim, seu jeito, Mãe, De doar suas mãos, A tanta gente, tantos feitos, Ao Dan, aos filhos e netos, A quem estivesse por perto. Em especial, mãe, Quero falar de suas mãos Nos últimos anos, Acariciando-me o braço Ou apontando meus lábios E o batom fraco. Quem sabe, mãe, Ao registrar a imagem De suas mãos lembrando pão, E delas, dias antes, em tremores, Confundidos com Parkinson, Eu me livre de fundas dores. Dores da alma, Que não se conforma Com a imperícia e o descaso, Que transformaram não só suas mãos, Mas você toda, mãe amada, Num enorme pão disforme. Maio/14 minesprado@gmail.com Publicação na Gazeta de São João de 10/5/14

sexta-feira, 9 de maio de 2014

RETIRO ESPONTÂNEO

Retiro espontâneo Vez ou outra é preciso chutar a rotina, como um meio de recarga dos neurônios, ou melhor, de reativá-los, chacoalhá-los. Nestes dias, é o que faço, “morando” na FLIPOÇOS 2014, na vizinha Poços de Caldas, MG. Se ano passado, fiz isso apenas como visitante, assistindo a palestras, conhecendo gente que só tinha visto na TV, agora ouso mais: além de visitante, participo do Recanto dos Escritores Independentes, eu e mais uns doze ou treze viciados nas letras. Nossa independência é tamanha que nos reservaram um espaço, não gostamos, mudamos para outro e boa! Não estamos mais no fundão da URCA, mas numa passagem onde, claro, o vaivém é constante. Temos passado um frio de lascar, pois há vento encanado, como dizem os velhos. Ali vemos e ouvimos de tudo, além de trocar ideias de escrevinhador. O papo só se interrompe, quando alguns visitantes param, para conferir nosso trabalho – livros feitos, na maioria, à nossa custa. Impossível colocar aqui tudo o que aprendo e rio, nos últimos dias. Há, por exemplo, um argentino que está no Brasil pela primeira vez e que nada sabe da nossa fala. Em compensação, no meu caso, entendo um pouco de espanhol, mas nada falo. Combinamos ensinar um ao outro. Ai, que salada! Queremos explicar “cabaça”. Até chegar lá, passamos pelo capacho, abóbora, chimarrão e sei lá mais o quê. Graças à bebida dos pampas, vem o consenso, já que o recipiente em que se prepara o chimarrão é feito de cabaça. O argentino diz que é “calabaça”, mas o Google me mostra diferenças. Deixo pra lá. Explico ao argentino que tenho algumas cabaças envernizadas, que dão um som legal, para acompanhar um sambinha... Por sua vez, o alagoano Cartucho, escriba de cordel, sósia de Gandhi, faz sucesso na FLIPOÇOS, inclusive com um encarte excelente para educação infantil no trânsito, trabalhado de A a Z; ex.: “P” de perigo. Aconselho-o a levar o material a autoescolas, diretorias de ensino, polícia militar, DER etc. Ele alega que nada conseguiu, em Alagoas. Um desperdício, pois o material é ótimo, até para panfletagem nos pedágios. No cardápio eclético, chama a atenção o processo civil em poesia: artigos do código são seguidos de alegações rimadas, uma delícia trazida por um advogado mineiro de Piumhi, cidadezinha próxima à serra da Canastra. Da lavra de uma carioca, há obras para educadores que lidam com a inclusão. De uma bancária aposentada, poesias profundas, curtinhas. Vez ou outra ela, tímida, arrisca: “Gosta de poesia?” Alguns passantes se interessam param, leem, elogiam; outros, falam um ‘não’ categórico ou apenas meneiam a cabeça. Um casal chama nossa atenção: o marido quer mostrar um poema à mulher; ela, amuada, dá de ombros e segue em frente. Como entender as mulheres? Se o cara não é romântico, queixam-se; se o é, ignoram-no. Caso à parte é a senhora que agita o pedaço, ostentando um cartaz sobre Alzheimer. Como cuida da mãe possuída pelo “alemão”, entendeu a importância de se pensar nos cuidadores, os verdadeiros, bem entendido. Assim, registrou no papel a própria experiência. Há um garçom poeta. Caracterizado, ele gasta muita sola de sapato na feira e promete cantar-me ‘Garçom, olhe pelo espelho, a dama de vermelho, que vai se levantar...’ Pra me divertir, amanhã usarei vermelho. E mais um tipo inesquecível, insistente pescador de freguesia: “Astronomia? Cosmologia?” Depois que a turma para, não consegue escapar da falação entusiasmada do idoso teimoso e sem desconfiômetro, cuja esposa é o anjo da turma. E uma patroa “santa”. Um dos lances mais engraçados: os pidonhos de restos do cafezinho que a gente toma para espantar o frio. Imaginem a minha cara, diante de um grandalhão pidonho de café. Brinco com ele, que não beba onde bebi, ou seja, na marca do batom. Justifico-me, com o velho ditado de que se descobrem os segredos do outro; não tenho coragem de lhe falar da falta de higiene. Pois não é que o cara de pau volta com “meu” copo vazio e tem a ousadia de dizer: “Olhe, descobri seus segredos, posso contar?” Depois dessa, fujo dele, apenas um cumprimento e ponto. Assim estou eu, neste final de abril gelado, num retiro espontâneo, longe de noticiários e jornais, nadando num mar de livros, escritores, palestrantes, tomando fôlego apenas para falar de rolinhas e gatos. Hoje, 29/4, emergimos das letras, para curtir excelente conjunto de jazz de Belo Horizonte, retrato dos anos 20, 30 e seus musicais fabulosos. Abril/14 M. Inês Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 3/5/14

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Madre Assunta, próxima beata do Brasil

 _ Você nunca será muito fervorosa – garantiu-me um diretor espiritual. Nada retruquei, mas pensei e muito. As aparências enganam! Gente introvertida não é de muitas demonstrações. Aquele padre deveria me conhecer melhor, pelo tempão que entregava minha alma a ele. Que decepção! Sou católica. Se por devoção ou tradição, não sei. Mas tenho a certeza de ser minimamente cristã. Viver em plenitude é seguir Cristo; ainda chego lá. Em 1993, recebi um livreto sobre a trajetória belíssima de Madre Assunta Marchetti. Como me fora enviado por um amigo que participava do Circulo do Livro, estava com dedicatória da scalabriniana – Irmã Maria Blandina Felipelli, responsável pela vice-postulação da beatificação de Assunta. O livreto incluía relatos de graças obtidas por aqueles que oravam para a Madre, nascida na Itália, em 1871, e falecida no Brasil, em 1948. Li-o, atentamente. Um dia, atordoada com mil problemas, telefonei para Irmã Blandina, apresentei-me, batemos um longo papo; ela, ótima ouvinte e conselheira. Como o natal estava próximo, pedi-lhe que me mandasse um tanto de impressos com a oração à Madre Assunta. Eu os enviaria aos amigos, com votos de boas festas. Agradeci e aguardei. Logo, recebi uma cartinha carinhosa da Irmã Blandina, juntamente com meu pedido. A partir daí, fez-se um forte elo entre mim e Assunta, que viera para o Brasil, por insistência do irmão, Padre José Marchetti, cofundador da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Barromeo – Scalabrinianas. Ele alegava haver, aqui, muitos desamparados, órfãos, migrantes, carentes de assistência irrestrita. A jovem Assunta, decidida a ser carmelita, mudou sua trajetória, uma dádiva para nosso país, já que seu desvelo aos menos favorecidos era incomparável e, logo, reconhecido como exemplo de altruísmo especial. Após a morte da religiosa, em São Paulo, onde há a Casa Madre Assunta, orações para que ela intercedesse em causas difíceis se tornaram frequentes. Diante do relato de centenas de graças alcançadas, a congregação decidiu postular a beatificação da boa Madre. Durante esse processo, um convite da Irmã Blandina Felipelli me surpreendeu: _ Maria Inês, gostaríamos que você fosse divulgadora da campanha pela beatificação de Madre Assunta – disse a voz delicada, do outro lado da linha. _ Irmã, eu? Imagine, sou “pequenininha” para essa missão! Só que a insistente irmãzinha me dobrou e eu me vi distribuindo a oração à Madre Assunta, não apenas nas igrejas, onde tive oportunidade de falar dela, mas na rua, no trabalho, no ônibus, em todo canto. Além disso, quando eu enviava cartas, anexava a oração que, para mim, já tinha demonstrado ser “ótima”. Vez em quando, eu telefonava ou escrevia para a Irmã Blandina, relatando graças que eu havia alcançado. Também lhe contava sobre as coincidências de os informativos chegarem a mim, quando eu estava com alguma atribulação. Ela me asseverava que não eram coincidências, que eu desenvolvera um laço fortíssimo com Assunta. E ela estava e continua certa. Há poucos anos, Irmã Blandina faleceu e, com isso, não recebi mais nada da Casa Madre Assunta. Essa ligação parecia adormecida dentro de mim, até 4 de abril último, quando exultei diante do que li na Folha de S. Paulo – A9: Assunta Marchetti será declarada beata do Brasil em outubro próximo. No ato, espalhei a boa nova, através de telefonemas, postagens virtuais, emails. Minha emoção com o resultado de uma longa campanha que eu julgava extinta é indescritível. Dizem que sou privilegiada, com o que concordo. Afinal, esta “pequenininha”, está em meio a algo grandioso:uma beatificação. Que num futuro não tão distante a beata se torne Santa Assunta Marchetti! minesprado@gmail.com Rabiscos de Minês:minesprado.blogspot.com.br Abril/14

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Infância ontem e hoje

Infância ontem e hoje No século 20, a abertura entre pais e filhos era restrita ao essencial. Embora o convívio fosse maior, o respeito excessivo pelos adultos, aliado ao temor, fazia a criançada passar apertos terríveis, sem que os pais suspeitassem de algo errado. A garotada mais expansiva se aliviava com os amigos. Porém, quem era introvertido sofria muito. O refúgio era o quarto, mas, se o repartia com irmãos, só sobrava mesmo o banheiro, onde o menino ou a menina amargava interrogações e conflitos, falando com as paredes e deixando a água da torneira escorrer, para abafar os soluços. Bullying - violência física ou psicológica intencional e repetida - é um dos tantos fardos da infância. Ele está por toda parte: na escola, na família, nas brincadeiras fora de casa. Mas, no passado, raramente os adultos estavam a par dessa perturbação sofrida pela criança. Ou, mesmo cientes, faziam vista grossa, talvez por medo da reação do causador do bullying ou por receio de desavença em família. Dois exemplos de bullying que nunca ninguém soube, ninguém viu: *_ Vai, baiaca, sua molenga, corre, passa a bola pra cá! _ berra o tio da desajeitada, em férias na casa dos avós. Baiaca, molenga. Essas ideias grudam nos miolos da coitada, gordinha e molenga mesmo. E, se o tempo for espremido ou ela for pressionada, aí é molenga e meia. Por isso, procura isolar-se das brincadeiras. Padece calada, chora por dentro. *Dois irmãos grandalhões, uma garota e um garoto, filhos de donos de armazém, estudam na mesma sala da menina tímida, “crente”, sempre atenta aos seus deveres. O garotão cisma com ela, persegue-a na classe, no recreio, na fila. A qualquer chance, tenta cutucá-la por trás. Às vezes consegue. A menina vive apavorada, sente-se acuada. A professora, moça ainda, não controla a situação, parece temer o brutamonte insuportável. O ano letivo se arrasta. A menina dorme mal, preocupada com o amanhã. Nem pensa em contar aos pais o drama na escola. Um alívio, quando tira o diploma do primário e se vê livre do algoz. Alívio maior, quando o pai conta que foi transferido para outra agência bancária e que, logo, a família se mudará para perto da praia. Ela não pensa nas delícias do mar, da areia; sua ideia é fixa: ficar longe do “tarado”. Mas a menina se engana. O demônio aparece onde ela menos espera. Num final de tarde, ela volta do ginásio, tranquila, ouvindo o canto das cigarras. De repente, avista, do outro lado da avenida, o gigante montado numa bicicleta de entregador. Ela treme, o coração pula, as pernas bambeiam. Reza para que ele não a veja. Corre, chega em casa, apavorada. E ninguém sabe, ninguém vê. Deve contar pra mãe, pro pai? Cadê a coragem? Se antes escondeu tudo, agora não adianta contar, pois o grandalhão está solto num outro mundo. Conclusão: cada vez que põe os pés na rua, pede proteção divina, para que o tal fique longe dela. O martírio permanece em segredo. Sua palidez demonstra que alguma coisa grave ela tem. Os pais, erroneamente, atribuem o abatimento da filha às cólicas das “regras”, outro fardo que acaba de aparecer na vida dela. **** _ Mãe, acho que você deve ter sofrido muito em criança! _ Ué, por que essa agora? De onde você tirou essa ideia? _ Nossa, mãe, você tem tanta pena dos pequenos! Só pode ser por isso! É, talvez seja... Aquela menina, agora mulher, vê poucas mudanças na infância de ontem e de hoje, ou melhor, um tremendo paradoxo: ontem, havia convívio maior, entre pais e filhos, mas os tabus eram montanhas intransponíveis; hoje, há abertura, (até demais), mas a convivência é minguada, para não dizer nula. Assim, as crianças sofrem bullying e outros pesadelos do mesmo jeito – sozinhas, na frente das telinhas. Abril/14 minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 29 de março de 2014

Abraço sem fim

Abraço sem fim (rir é o melhor remédio) Maricota é clicada, Num momento de muita indignação: De óculos, dedo em riste, microfone na mão. Que acontece, então? Graças ao blá-blá-blá da irritada, Extensa matéria é publicada, Relatando a falta de legista, Em São João da Boa Vista. Cidadãos atuantes leem jornais: Maricota é comentada, Elogiada, criticada, Que mais? Uma senhora desavisada, Vista já meio cansada, Diante do retrato de Maricota, Conclui: minha amiga bateu as botas. Pobre dona Cida! Lamenta, chora, A amiga perdida. De certo, chegara a hora... Passado um tempinho, Numa noite de domingo, Dona Cida vai ao jardim, Ver como anda a banda. Tristeza trancada em casa, A senhora bate palmas, Cumprimenta toda gente, Até que, de repente: Jesus! Será Maricota De corpo e alma? Bem no meio do jardim, Um ímã une as duas, Num abraço sem fim. **** Março/14 Maria Inês Prado minesprado@gmail.com “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

segunda-feira, 24 de março de 2014

PAGU E PEARL BUCK

PAGU e PEARL Duas mulheres que cruzaram comigo em duas fases da minha vida – juventude e velhice. Só que, na mocidade, não temos noção de como esses encontros, nem sempre físicos, nos tocam e se refletem pela vida afora. As impressões permanecem adormecidas, latentes, mas afloram, a qualquer tempo, devido a circunstâncias imprevisíveis e até surpreendentes. Assim aconteceu comigo, em relação a essas duas personalidades que se destacaram no mundo literário e na luta em prol dos menos favorecidos. Patrícia Rehder Galvão - Pagu (sanjoanense – 1910/1962), militante política, jornalista, iniciou sua trajetória artístico-literária em São Paulo, SP, “espiou” o mundo, apontou as injustiças sociais e a hipocrisia burguesa, lutou pelos direitos do proletariado, decepcionou-se com o abismo entre seus ideais e a realidade comunista. Pearl Sydenstricker Buck (americana – 1892/1973) iniciou-se no mundo das letras na China, onde viveu por quarenta anos, desde pequenina, na companhia dos pais missionários. Ativista, batalhou pela proteção das crianças desamparadas, pelos direitos civis dos afro-americanos e até mesmo contra os testes nucleares. Em razão do comunismo, abandonou a China e voltou para os Estados Unidos. No final da vida, o governo chinês negou-lhe o visto para visitar o cenário da maioria de suas obras. Pearl Buck foi a primeira mulher americana a ganhar o Prêmio Nobel em Literatura –1938. Na minha juventude, tive Pagu por perto, pois a sanjoanense radicou-se em Santos, onde se projetou no mundo artístico e literário. Pagu era colaboradora do jornal A Tribuna; lia diariamente suas crônicas, sem imaginar que, no futuro, ela teria tanta importância na minha vida. Á época, gravei bem aquele apelido curtinho, frequentemente mencionado no meio estudantil. Quem nunca ouviu falar da JUC, que ensejava reuniões nas casas de família onde compareciam intelectuais e artistas? Pagu se fazia presente em toda parte e foi tão importante para os santistas que mereceu a Oficina Cultural Pagu, hoje localizada na Cadeia Velha, a mesma onde foi presa e torturada, em represália a sua participação nas manifestações dos trabalhadores. Pagu e eu nos banhamos nos mesmos mares, mares que alimentam devaneios e apaziguam a alma... Não me recordo bem como Pearl entrou na minha vida, se por mim mesma ou por influência de meu futuro marido, fã dos autores estrangeiros. O fato é que me encantei com a mulher combativa, sonhadora, desejosa de melhorar o mundo, mulher amorável e de amores intensos que lhe custaram críticas e até um certo isolamento para viver em paz. Muitas de suas obras, mais de cem, têm caráter autobiográfico. Haja vista “A boa terra”, obra mais tarde transformada em filme pela MGM, que retrata o modus vivendi de uma família chinesa que experimenta todas as faces do sofrimento e do amor. Seca, pobreza, venda de filhos, conquista de status, respeito irrestrito ao homem da casa, submissão da mulher, concubinato dentro do próprio lar são alvo do espírito aguçado e sensível da escritora vaidosa que não dispensava o batom vermelho e os vestidos chineses. Reavivando Pagu. Jamais me imaginei morando no interior, mas fiquei feliz que o destino me permitisse respirar os ares que Pagu primeiro respirou. Nas reuniões da Academia de Letras de São João da Boa Vista que passei a frequentar como convidada, ouvia, atenta, referências a Pagu. O cantinho dedicado a ela – Centro Cultural Pagu, onde os jovens podem pesquisar, ler, estudar, também me cativou. Meus laços com Pagu ganharam força quando, em 2006, tornei-me acadêmica. Precisando indicar meu patrono, não titubeei: Pagu – Patrícia Rehder Galvão, mãe de Rudá de Andrade, recém-falecido (3/2/09), filho de Oswald de Andrade, escritor e primeiro marido de Pagu, e Geraldo Galvão Ferraz, filho de Geraldo Ferraz, jornalista, segundo marido de Pagu, que muito a amou, aceitando e compreendendo suas excentricidades. Tendo escolhido Pagu para patrona, é natural que quisesse conhecer a fundo a militante, a escritora, a mulher de olhos misteriosos e maquilagem exagerada. Devorei tudo que dizia respeito à vida de Pagu, ficando particularmente impressionada com o trabalho exemplar de Lucia Teixeira Furlani- “PAGU, Patrícia Galvão, livre na imaginação, no espaço e no tempo” (Ed. UNISANTA , 4a edição,1999, Santos –SP). Uma das obras de Pagu, sob o pseudônimo de Mara Lobo, “Parque industrial” (1933), primeiro romance proletário brasileiro, é leitura obrigatória para se entender a autora. Revisitando Pearl Buck. Em 2003 fiz a primeira viagem aos Estados Unidos, onde um de meus filhos mora há anos. A idéia de ir ao exterior sempre estivera ligada à Europa que, pra mim, combina com antiguidade, romance, tradição, cultura e tudo de bom para o espírito. Mas a vida, às vezes, toma rumos inesperados. Numa manhãzinha julina, no verão de 2003, abracei meu filho em solo americano. - Mãe, traga alguma roupa mais quente- avisara ele dias antes. - Ué, por quê? Não é verão aí? - É sim, mas você vai precisar. Vamos para as montanhas. Fiquei na mesma, mas logo entendi que deveria ser mais uma surpresa para mim, arte na qual meu menino é mestre. Então, sem mais perguntas, pus alguns agasalhos na bagagem. O casaco de couro já ia mesmo, pois, aqui, estávamos no inverno. Alguns dias após minha chegada, tive que refazer a mala. Um dos destinos? New York. O outro? As montanhas. E, por favor, olha o agasalho! Partimos logo cedo. Controlei a curiosidade. Ser desmancha prazer não faz meu gênero. Horas e horas de estrada. Paradas para as “necessidades”. Comida e água numa geladeira portátil para evitar delongas. Após mais de dez horas, sob garoa e frio, quase noite, montanhas lindíssimas e verdíssimas, as Green Mountains, chegamos ao destino surpresa – cidadezinha de poucas ruas, Danby, em Vermont, estado americano quase divisa com o Canadá. Aliás, é de Vermont o mármore empregado no monumento a George Washington, marco imponente que identifica Washington –D.C. O corpo meio travado, ali estava eu diante de uma casa em reforma, enorme, quatro andares, branca, entradas por todos os lados, cercada por muito gramado; ao longe, o som de água corrente. Vizinhos? Apenas uma casinha velha com um residente mais velho ainda. Entramos. Cuidado aqui e lá. Escadas estreitas e íngremes. Aposentos amplos. Paredes internas semidesmanchadas, deixando à mostra o recheio de lã de vidro. Janelões. Então... - Mãe, aqui morou Pearl Buck, aquela que você gostava de ler, lembra? - Pearl Buck?- mal conseguia falar _ Filho, quanta coisa eu li dela! Mas...como você descobriu isso aqui? A casa, patrimônio tombado “vendido” por preço simbólico, tem a reforma condicionada às normas da associação que zela pela preservação histórica. Mas reformar aquilo tudo? Eu estava muda e mais muda fiquei quando meu filho mostrou-me o quarto em que Pearl dera o último suspiro. E eu? Será que Deus me daria a chance de respirar os mesmos ares? De isolar-me ali, com meus pensamentos e escritos ou simplesmente com meu tricô? Pearl também era tricoteira... Nem sei quanto tempo ficamos naquele cenário em que só havia uma luminária à bateria. O resto era breu. Rabisquei algumas impressões sob luz precária e zunido de pernilongos. Depois fui extravasar minhas lágrimas a céu aberto. A chuva fina aplacou-me o coração tumultuado. Partimos dali tarde da noite, rumo a New York. Porém, diante do mau tempo, pernoitamos em Burlington, maior cidade de Vermont. Foi a única vez em que lavei minha cabeça às três horas da manhã, após uma briga de quarenta minutos com a regulagem da água quente... Voltei a Danby em dois invernos. A reforma da casa que acolheu Pearl está adiantada. Há planos de colocar até um elevador, talvez pensando nas pernas desta mãe... Pertinho de lá, a cachoeira semicongelada já atrai os turistas e, recentemente, mereceu reportagem no New York Times. Para desespero de meu filho, a privacidade começa a ser prejudicada. Mais motivada do que nunca, a partir dessa surpresa única, voltei a ler Pearl Buck e obras sobre sua vida, sua casa em Danby: The last charpter, por Beverly Rizzon, e A woman in conflict, por Nora Stirling, têm me fascinado. Pearl, mulher de muitos amores, dois casamentos e um relacionamento incomum com Theodore F. Harris, Ted, trinta anos mais novo, seu devoto até a morte. Ano retrasado conhecemos a penúltima moradia da escritora, uma fazenda enorme, em Bucks County, Pennsylvania. O lugar belíssimo, aberto ao público, acolheu os restos mortais de Pearl. Seus objetos pessoais ali expostos parecem cheios de vida como o era sua dona, cuja exuberância encantou o mundo. Lá encontramos também uma das filhas adotivas de Pearl Buck, Janice, uma sessentona corpulenta e de pouca fala. Pearl teve uma única filha de sangue, Carol, retardada, ‘uma criança num corpo de mulher’. Assim, tenho, para sempre, minha vida entrelaçada a essas duas imortais das Américas, mulheres avançadas no tempo: combativas, desafiadoras, envolventes, vaidosas, amadas, humanas. E corajosas até a morte: ambas lutaram contra o câncer, mas foram por ele derrotadas. Talvez a única batalha perdida nas suas trajetórias notáveis e com muitos pontos em comum. Quem sabe aquela casa em Danby, VT, ainda venha a testemunhar, mais intimamente, parte da minha vida. Deus sabe, mas não me conta. P.S.: Em agosto de 2010 visitei o último endereço de PAGU – Cemitério do Saboó, em Santos. M.Inês Prado Cadeira nº 36 Patrona: Patrcia Rehder Galvão - PAGU Fev./09