quarta-feira, 2 de outubro de 2013
Crônica da crônica: minha sala é um museu
Crônica da crônica: minha sala é um museu
Dia destes uma professora das boas perguntou-me como ensinar crônica aos alunos. Questão danada de responder. Seria mais fácil abrir um jornal e apontar-lhe crônicas dos ótimos Ruy Castro, Carlos Heitor Cony e outros. Ou ainda uma coletânea de crônicas machadianas, em que burros falantes satirizam o bicho-homem. Nos últimos tempos, explicações teóricas me provocam certa preguiça, não sei por quê.
Se tivesse que dizer algo que preste à mestra e amiga, dir-lhe-ia: recomende a seus pupilos, como primeiro passo, que usem lupa, que reparem em tudo o que se passa no dia a dia, que pausem o olhar nas pequenas coisas, até descobrir que elas são grandes e importantes. Assim nasce a crônica, de parto normal e sem fórceps, como deve ter nascido “Impressões digitais”, do singular Antonio Prata (Folha, C2, 22/9/13), em que ele viaja, divertidamente, ao observar dois dedões que caem no seu campo de visão, enquanto sentado na praia. Resumo: um dedão carrega tudo de feio e ruim, todas as sujeiras do mundo; outro, só falta cantar, de tão lindo!
Hoje, dei uma de Sherlock Holmes e analisei minha sala, verdadeiro museu cheio de coisas carregadas de significados, que me inspirariam crônicas pro resto da vida.
É a mesinha de 1960, escondida sob o mármore rosado que ganhei da mãezinha emprestada, minha sogra, mais antigo do que a mesa que ele tanto valoriza, ao ocultar lascas e manchas deixadas pelas traquinagens da criançada e pelos copos molhados dos marmanjos descuidados.
São as cadeiras velhinhas, uma de balanço, torneada, com assento de palhinha, da avó de sangue alemão, sisuda demais, sempre à espera de que os netos lhe pedissem a bênção. Outra, confortável, de espaldar alto, na qual um padreco desajeitado ficou no cai não cai, com as pernas balançando no ar.
É o lampião de cobre, com vidros bisotè, comprado num yard sale (bazar ao ar livre, onde se vendem coisas que não têm serventia para os donos da casa) e que resistiu a dez horas de viagem, prensado numa mala estufada. Que momentos únicos essa peça artesanal testemunhara, enquanto espalhava luz de vela para os notívagos românticos, talvez tecendo cartas de amor ou trocando juras, carícias?
São os apoios em pedra sabão para a coletânea de Fernando Pessoa: duas cabeças de cavalo perfeitas. Por coincidência, junto ao conjunto, pousam dois estribos de estanho todo trabalhado. Imagino histórias dos pés que se escoraram neles. Seriam pés de fada ou de algum brutamonte picareta, elemento fincado neste solo gentil, desde sempre?
Mais longe, na parede de tijolo à vista, meus pais queridos, retratados pela prima artista, abençoam-me dia e noite. O amor deles daria um compêndio em prosa e verso, recheado de lições de respeito, abnegação e carinho velado, porém autêntico.
Satisfeita, pego um volume de Pessoa, abro-o aleatoriamente e leio: “Meu senso intimo predomina de tal maneira sobre meus cinco sentidos que vejo coisas nesta vida – acredito-o - de modo diferente de outros homens. Há para mim – havia – um tesouro de significados numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato.” (Fernando Pessoa, ‘Obras em prosa, Eu profundo’, p. 37, Editora Nova Aguilar, 1985).
Pessoa e Machado, toques permanentes nas nossas divagações.
M. Inês Prado minesprado@gmail.com Blogger:minesprado.blogspot.com.br
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