sábado, 14 de setembro de 2013

NINGUÉM É DE NINGUÉM

Ninguém é de ninguém Sexta-feira, manhã de sol. Maricota já fez a santa caminhada, agora acaba de sair da ótica, onde foi - aleluia! - ajustar os óculos. Percebe que uma amiga que ela não vê há muito tempo vem vindo. Imagina que conversarão por alguns bons minutos, já que a outra é curiosa, vai querer saber por que Maricota anda sumida etc. e tal. De fato, assim que se cumprimentam com os beijinhos automáticos, a outra vai direto à satisfação da curiosidade. Maricota explica que se mudou do centro para um bairro mais sossegado. Apartamento? Não, não, casa térrea, lugar muito arejado e tranquilo. E a casa do centro? Maricota diz que está para alugar ou vender, tanto faz. A outra quer saber o preço de uma coisa ou outra. Curiosidade ok. Despedem-se. Maricota retoma os passos, vai em direção à padaria mais próxima. Já ia se esquecendo do queijo fresco, artesanal, de boa procedência. Mas os pensamentos ficam lá trás, na amiga que não via há séculos e que “só” quis bisbilhotar sobre preço de venda ou de locação da casa velha de Maricota. Então, vem-lhe à mente o termo da moda – pertencimento. Será que Maricota ainda pertence a este mundo onde amigos ou conhecidos passam um tempão sem se ver e, quando se cruzam, o “tudo bem?” é pró-forma e o papo logo deságua no cifrão? “Ninguém é de ninguém, Na vida tudo passa, Ninguém é de ninguém, Até quem nos abraça.” Eta, bolerão, sucesso nos anos 60, composição de Umberto Silva, Toso Gomes e Luiz Mergulhão , com interpretação do magistral Cauby Peixoto e também de outros, com vozes personalíssimas: o inesquecível Altemar Dutra e o feio, porém carismático, Agostinho dos Santos. Maricota desce a ladeira como se estivesse num salão de baile. Na base do cheek to cheek, passeia pelo bolero e pela imagem de Altemar Dutra, que parece ter descido lá das alturas. Bendito seja esse saudosismo que a ajuda a pôr ordem na miscelânea de ideias e emoções. A realidade de Maricota é a mesma de todos os mortais. Neca de pertencimento, por aqui. Quem acha que pertence a alguém ou a algum lugar está fora do ar. Ninguém é de ninguém. Melhor deixar de lado o questionamento inútil, pois logo mais cruzará com outro alguém e a sensação de não pertencimento se repetirá, seguida da mesma indagação e resposta idem. Com razão o polêmico Luiz Felipe Pondé, que conclui uma de suas crônicas assim: “O romantismo nos legou esse sentimento sem cura de que criamos um mundo no qual não nos reconhecemos.” M. Inês Prado Set./13 minesprado@gmail.com Blogger: ”Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra em 14/9/2013