domingo, 28 de julho de 2013

O nome de Deus

                                                          O nome de Deus

     Tenho observado que invocar o Pai a toda hora está na moda: ‘Deus te abençoe’, expressão que anda na boca de todo mundo, ao vivo ou via engenhocas, com a intenção de agradecimento ou  despedida.
     Antigamente, pedir a bênção aos avós, pais ou padrinhos era sinal de profundo respeito. Se bem que o “pedinte” às vezes cumpria um ritual imposto pela educação severa, sem convicção ou noção do ato. E, quando não queria submeter-se a tal, dava um jeitinho de furtar-se, driblando a família, “escapando de fininho”, como dizia meu velho pai, em relação a um dos meus irmãos que odiava pedir a bênção a minha avó paterna. Talvez o sangue dela, de tempero alemão, criasse alguma barreira entre ela e nós outros, sei lá.
    Hoje é raríssimo alguém pedir a bênção, mas, em contrapartida, é comum  almejar bênçãos Dele, como se usam  ‘até logo’, ‘obrigado (a)’ e outras expressões que, no dia a dia, as pessoas empregam, de modo irrefletido, automático, com o pensamento nas compras para o feriadão, na viagem do filho, na manicure, na consulta médica e noutras questões que reinam soberanas nas cabeças sempre muito ocupadas para se concentrarem no interlocutor. É a tão conhecida falsa presença que somente a alma  sensível é capaz de notar, embora disfarce, por delicadeza. Na verdade, é horrível perceber que estamos falando ao vento.
    Um dos dez mandamentos que a criançada aprende no catecismo determina: “Não tomar seu Santo nome em vão.” Por isso, noutros tempos, levava-se o maior pito, quando se  dizia ‘Juro por Deus’, ao mesmo tempo em que se cruzavam os dedos sobre os lábios.
    Hoje, ninguém mais fala em levar pito, embora motivos para levá-lo haja de sobra. Também não se jura mais por Deus, para se fazer acreditado, mas falar mentiras no lugar de verdades é costume agarrado ao homem igual carrapato. Por sua vez os espirros, que já nascem com a gente,  não merecem mais  o ‘Deus te crie’ ; este caiu em desuso, foi trocado por ‘Saúde!’. Isso se alguém estiver prestando um mínimo de atenção em quem espirrou, o que nem sempre significa preocupação com a saúde alheia. Muitas vezes manifestam-se votos da boca pra fora.  A cabeça pode estar longe dali, ligada à morte da bezerra...
     Por essas e outras é que acho muito estranho ouvir tantos ‘Glória a Deus’ e Deus te abençoe’. Desconfio de contaminação entre as crenças, pois certas demonstrações deixaram de caracterizar este ou aquele fiel, viraram hábitos de todo mundo. Então, Glória a Deus  por mais estes rabiscos e Deus te abençoe por prestigiá-los.

“Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br


M. Inês Prado
Julho/13
Publicado no Edição Extra de 27/7/2013

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Rabiscos de Minês: ALEGRIA, ALEGRIA

Rabiscos de Minês: ALEGRIA, ALEGRIA:                                                      Alegria, alegria    A moça chega para faxinar minha casa, trazendo junto a alegria...

ALEGRIA, ALEGRIA

   A moça chega para faxinar minha casa, trazendo junto a alegria de viver e trabalhar. E como trabalha! A semana dela é cheia, corrida, suada. Troca-se, toma café, cantarola, assobia. E põe a mão na massa. Mas, antes, num ritual divertido, pega fones de ouvido, desembaraça uns fiozinhos marotos, engata-os no celular e explica:
   _  Ponho um só, tá vendo? Assim, se a senhora me chamar, eu escuto.
   E lá vai ela, vassoura, balde na mão, a cantarolar, sob uma FM da hora. Une o útil ao agradável e faz questão de frisar que os problemas ela deixa em casa. O que tem solução tem, o que não tem, vai levando...
   Interessantes as lições de vida que se colhem a cada dia, através de pessoas simples, mas sábias. Um espírito de porco subestimaria tal sabedoria, diria que é conformismo.
     O que tenho aprendido com gente humilde daria um compêndio. Adoro o jeito de se expressarem, pois falam com o coração aberto. Creio que a luta que enfrentam, desde pequeninos, os deixa fortalecidos  para as batalhas mais pra frente.
    Alegria, alegria.  Noto que as unhas das mãos calejadas de tanto cavar,  plantar, colher, cortar, debulhar, limpar, polir,  ganharam esmalte no último final de semana.
    Como essa moça, milhões de sofridos acumulam quilômetros rodados a pé, de bicicleta, de mototáxi ou do que calhar,  para ir à escola ou  ao trabalho,  ou  ainda para comprar  míseros gêneros alimentícios e medicação nem sempre obtida do poder público. Pode ser que frequentem alguma igreja ou, eventualmente, alguma diversão. Se bem que a TV, presente em qualquer casebre, os entretém em casa mesmo. 
    Críticas aos Faustões da vida não faltam. Os letrados são mestres nisso. Só que, para quem não tem alternativas outras de lazer e, mesmo alfabetizado, não é dado à leitura nem a trabalhos manuais, o que sobra é a  televisão e sua programação sofrível.
   Embora as políticas municipais de se levar entretenimento à periferia, falta muito para preencher as lacunas de lazer aliado à cultura – teatro, cinema, palestras, leitura itinerante e outras iniciativas, que proporcionem  inserção literal na sociedade.
   Mas, retomando a alegria, alegria, da moça da faxina. Além do cantarolar e do assobio, ainda traz interesse por revistas para os trabalhos escolares da criançada da família. A mãe/avó  ajuda a caçar palavras, recortar figuras, enfim, participa da vida estudantil dos pequenos, coisa que muita gente “bem” não faz.
   Impossível não comparar a atitude dessa mulher batalhadora com a de mães e pais que só conhecem os mestres dos filhos, quando estes estão com a corda no pescoço. Caso contrário, não têm a mínima ideia do que os filhos estudam na escola, se escrevem bem ou mal, qual o cronograma de provas e trabalhos e, se duvidar, nem a caligrafia deles reconhecem.  Acham que já cumprem a obrigação, com a compra do material didático, acompanhada de lamúrias por causa do preço absurdo que lhes sacrificará as prioridades da vida superficial que levam,  como  academia, cabeleireiro, manicure, butique, botox, carro do ano, restaurantes, Disney e outras.
    Alegria, alegria, a moça assobia, ao som da FM. Ela está entre os milhões de brasileiros que amargam condições de vida terríveis, como a violência desenfreada (há meses um irmão dela foi assassinado por engano) e o vergonhoso atendimento do SUS e suas barbaridades, que vão desde diagnósticos equivocados, comunicados “na lata” (ex.: câncer), até “taxa” para expedição de cópia de prontuário. Será que ela deve depositar alguma fé  nas recentes manifestações de rua?

M. Inês Prado    Jul./13

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Homenagem a Águas da Prata

  HOMENAGEM A ÁGUAS DA PRATA                                                                    Entrelaçamento
                                                                              Autora: Maria Inês de Araújo Prado
Com filhos ou sem eles, casamentos rendem muitos frutos decantados em prosa  e vero pelo mundo afora. Alegrias, tristezas, mudanças, sonhos, aliados a  tudo mais pelas mãos do escritor, formam entrelaçamentos incríveis.
Por estes dias me dei conta de que, mesmo antes de nascer, “este fruto” já estava entrelaçado à Rainha das Águas, cenário da lua de mel de meus pais e, mais de cinquenta anos depois, palco em que viveram as derradeiras cenas de amor ímpar.
Longe daqui, nasci, cresci, casei, tive filhos. Logo chegou a fase de buscar um cantinho para passar as férias; sem viagem, elas não tinham tanta graça. Aliás, o mundo virou do avesso, mas certos hábitos se mantêm – férias, feriadão, a família tem que viajar, não importa a que preço.
Prata, com seu ar puro, tornou-se, então, muito especial para nós. Testemunhou os primeiros tombos de nossos meninos a cavalo; ofereceu-lhes o encanto do bosque, com sua fonte d’água  fresquinha, seu macaquinho que tanto os divertia. Os passeios de charrete com o seu Ventura eram uma delícia! Verdadeiro patrimônio da cidadezinha, fico feliz em vê-lo, ainda hoje, firme no posto, a contar suas historias e ler nossas mãos.
Ah, se as paredes do antigo Hotel São Paulo falassem... Quanta traquinagem dos meninos por aqueles corredores! E jamais esqueci o corre-corre de todo mundo, quando faltou água no hotel inteiro, coincidindo com uma epidemia de diarreia...
Anos se passaram, parte da família se mudou para o interior. Nos fins de semana, pegar o carro e dar um pulo até Aguas da Prata era programa obrigatório. A meninada aproveitava a valer, alimentando as pombinhas, uma festa para os olhinhos curiosos (pena que esse momento de descontração esteja hoje proibido!), esbaldando-se no playground do bosque, comendo uma espiga de milho bem cozida e quentinha. A alegria da criançada restou perpetuada em muitos álbuns manuseados à exaustão e desmembrados, à medida que a turma cresceu e cada um tomou seu rumo.
Essa mudança para o interior (São João da Boa Vista) me proporcionou reencontro com uma pessoinha inesquecível – Lourdes de Jesus. Nos anos 60, sua voz divina iluminara meu casamento e, décadas depois,   Lourdes, com seus olhos sorridentes, refletindo o mar santista deixado pra trás, encantava os pratenses.  Entrelacei-me estreitamente  a ela, cuja vida daria um belo romance. Compartilhei seus últimos dias. Lourdes amava Prata!
Por fim, meus pais, já idosos e não tão saudáveis, venderam a chácara onde tinham vivido por quatorze anos e fixaram moradia nesse pedacinho do céu que passou a fazer parte da minha rotina. Decorei as curvas da estrada São João – Prata, especialmente a que nos permite deparar com uma janela gigantesca pintada de verdes mil, onde a igrejinha encantadora reina soberana. Essa visão é um banho de paz que não canso de tomar.
Da casa de meus pais, curtíamos o barulhinho gostoso do rio e o verde do morro em que a devastação, lamentavelmente, já era realidade. Vez em quando, um comboio e o apito tradicional invadiam a paisagem. Pena que o passeio de trem da lua de mel meus pais não chegaram a repetir. Saudade deles!
Tudo passa. Risquei Prata do mapa por um bom tempo. Quando muito, ia aos bailes da Velha Guarda, pois, a noite disfarçava tudo que me evocava  recordações, algumas muito dolorosas.
Aos poucos, superei as ausências dos meus queridos e voltei a admirar o janelão que se abre no fim da curva. O bosque dá boa meditação, no sossego dos dias úteis... A água com bicarbonato me cai bem. O Cristo... ah, creio que ainda me espera  de braços abertos e acolhedores.
Enfim, Águas da Prata é poesia, é magia. Quem sabe, um dia, esse namoro entre mim e ela acabe em casamento. Entrelaçamento.
Obs. 2º lugar – Concurso Ademaro Prézia de Literatura - 2006