sábado, 16 de novembro de 2013

Ao sabor das ventanias

Ao sabor das ventanias Nos tempos de escola, se alguma coisa errada acontecia na sala de aula, um grupo era chamado para se explicar ou ajudar a solucionar a questão. Fosse o que fosse, uma conduta era unânime: não havia dedo-duro, ninguém entregava ninguém. Porém, está tudo tão mudado, para não dizer invertido, que o abominável, ontem, tornou-se mérito, hoje. Ao acusado de cometer um crime é oferecida a chance da delação premiada, ou seja, pena reduzida, em caso de condenação, se colaborar com as investigações e apontar suspeitos de envolvimento no ato ilícito. Quando poderíamos imaginar que essa e outras condutas socialmente reprováveis, lá trás, tornar-se-iam rotineiras, frequentando as páginas jornalísticas, como algo normal? Outra questão proibitiva era ler, sem permissão, qualquer papel que estivesse ao nosso alcance. Cartas, bilhetes despertam a curiosidade de todo mortal. Mas, em idos tempos, ai de quem atropelasse essa norma! Era duramente repreendido, passava vergonha perante a família e os amigos. Agora, e com nossa anuência tácita, através das redes sociais, o destino de toda privacidade é o ralo. Pela facilidade de acesso aos perfis dos feicistas (ou de membros de outras redes), sabe-se onde o cidadão nasceu, onde mora, onde estudou, trabalha, se é casado, solteiro, se mantém relacionamento, para onde viaja etc. Mesmo ciente de que há perfis fictícios, a tendência de expor o autorretrato predomina. “Existir” no mundo virtual é hábito que se expande assustadoramente, como se as redes sociais fossem o único canal de comunicação na face da terra. Diante dessa realidade, chega a ser hilário um internauta enfurecido com a secretária dele, porque ela deu uma espiadela na carta largada a esmo, ou castigar o filho, por xeretar o extrato bancário do pai muquirana. Nas famílias antigas era inadmissível irmão dedar irmão. A delação denotava fraqueza de caráter, preocupava os pais tanto quanto a mentira. O especialista em computação, Edward Snowden, ex-analista da NSA (agência americana de inteligência), refugiado na Rússia, escancarou as portas da espionagem sistemática praticada pelos Estados Unidos, desencadeando discussão acirrada mundo afora. No desdobramento dos fatos, alguns países são apontados como seguidores da mesma linha, enquanto outros se mostram vitimas. No frigir dos ovos, dizem os entendidos que, de um modo ou de outro, toda nação é espiã, segundo as conveniências. Espionar é feio, mas pode ser muito útil. “A janela indiscreta”, produção de Alfred Hitchcock, de 1954, com James Stewart e Grace Kelly, é prova cabal de como a espionagem pode ser parceira de investigações e elucidações de enigmas. No filme inesquecível, um fotógrafo profissional está de molho, com a perna fraturada. Para passar o tempo, espiona a vizinhança, o que o leva à constatação de um assassinato. Afinal, diante de situações como essa, pode-se dizer que a espionagem é, muitas vezes, instrumento de utilidade pública. A pergunta que fica é: como nossas crianças devem ser ensinadas, em relação aos pecados d’outrora, se hoje são atitudes abonadas e incentivadas pela sociedade? Uma hora, certa conduta é feia, é defeito grave. Mas, se convém ao mundo adulto, torna-se mérito premiado, porque contribui para o bem comum. Para adultos medianamente instruídos, tal relatividade já é complexa. Imagine para a petizada! Assim, em termos de educação, melhor engavetar certas noções do que dar nó na cabeça da criançada. Que fique tudo no vai da valsa e ao sabor das ventanias. M. Inês Prado Nov./13 minesprado@gmail.com

sábado, 9 de novembro de 2013

A curiosidade das crianças

A curiosidade das crianças Dias destes fui entrevistada por alunos de uma 5ª série muito bem preparada pela professora de português. Disciplinados, levantavam as mãos para fazer as perguntas previamente escritas no caderno. Antes, porém, contei-lhes um pouco de mim, preocupando-me com a adequação do vocabulário e o interesse das informações que, a meu ver, satisfariam a curiosidade da petizada. Falei-lhes de filhos e netos, de estudos e trabalho, de preferências de lazer e de atividades mil que preenchem meu viver, principalmente a leitura e a escrita. Depois, então, deu-se a roda viva. Só me faltou estar sentada numa cadeira giratória. As indagações pipocavam de lá e de cá. A todas eu respondi numa boa, sempre atenta para não resvalar para algum assunto paralelo. Um garotinho muito sério, voz firme, própria de quem sabe o que quer, soltou esta: _ A senhora tem marido? Confesso que ele me pegou de surpresa. Tanta coisa para querer saber e o pequeno me vem com uma questão tão pessoal! Felizmente, não titubeei: _ Já tive, não tenho mais. Morreu faz muito tempo – respondi, sem entrar em detalhes que, além de impróprios, nada acrescentariam à finalidade da entrevista, trabalho para uma feira cultural que aconteceria dali uns dias. Terminada a sabatina, autografei cadernos da meninada em fila muito organizada. Consegui até fazer versinho em alguns deles. Despedi-me deles, tranquila, leve e solta. Dever cumprido. Mas trouxe comigo o incômodo de uma questão que costuma sair muito da boca de adultos, não de crianças. Adultos acham que todo mundo tem que ter um par. Se não tem, já teve, não é? Não obrigatoriamente, mas fica óbvio, se falamos de filhos, netos; afinal, ninguém caiu de paraquedas. Mas adulto é terrível, adora cutucar feridas. Por isso, detalhes são esmiuçados sem piedade. Lembro-me muito bem das insinuações que me faziam, quando eu dizia que, após minha separação, meus meninos tinham ficado com o pai. Nossa, então eu perdera a guarda deles? E eu me via a explicar que eram adolescentes e que podiam escolher como de fato escolheram aquele que parecia o mais “legal” dos pais. Se a escolha foi certa ou desastrada é matéria do passado. Pois é, curiosidade de criança a gente satisfaz com jeito, pois deixá-la sem resposta é estimular a introversão e a insegurança. Agora, a dos adultos é sinônimo de bisbilhotice, merece rasteiras e, conforme o caso, o silêncio, a melhor das respostas. M. Inês Prado Nov./13 minesprado@gmail.com Blogger: ”Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

sábado, 2 de novembro de 2013

Enem e batalhadores anônimos

O Enem – Exame Nacional de Ensino Médio - atrai gente de toda faixa etária e também de nível sociocultural diversificado, sendo importante estímulo para a concretização de sonhos, como o ingresso em universidade pública ou obtenção de bolsa de estudo (ProUni - Programa Universidade para Todos). Neste ano, dentre os 7,1 milhões de inscritos no Enem há casos peculiares que têm merecido destaque na mídia. Inúmeros adultos (15% com mais de 30 anos, segundo o MEC), com longa carreira em diversas profissões, almejam a conquista de espaços mais atraentes e, assim, concorrem, lado a lado, com a moçada-estudante, inclusive treineiros. São domésticas, técnicos em radiologia, enfermeiros, professores aposentados, donas-de-casa e muito mais. Todos visam a novos trajetos, seja pela chance de crescimento, seja pelo desejo louvável de escapar da rotina morna, retomando os estudos e abrindo janelas promissoras Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi o caso de uma moradora de rua da Pauliceia Desvairada. Louca para mudar de vida, inscreveu-se no Enem mais uma vez. Por azar ou “tranquilidade” perdeu a prova, pois chegou dez minutos atrasada. Por que do atraso? O relato dela a um repórter é simplório, mas tocante. No sábado, dia 26, madrugou, pra ter tempo de comprar roupa nova e também dar um trato nos cabelos. Queria estar no capricho na hora da prova, um acontecimento pra lá de especial. Depois, de se embonecar, pegou condução para ir ao local do exame, mas ficou presa num congestionamento. Com receio de não chegar a tempo, desceu do ônibus, resolvida a fazer o resto do percurso a pé. Conclusão? Chegou toda arrumadinha, mas com um atraso de dez minutos. O portão fechado pontualmente às 13h era barreira intransponível para aquela que se arrumara como quem vai ver Maria. Fazer o quê? Resignação faz par com gente sofrida. A coitada sempre tinha dificuldade para fazer a inscrição no Enem, por falta de endereço fixo. Este ano estava tudo certo, pois dera o endereço de um Centro de Convivência. Mesmo assim, por culpa da vaidade feminina que subsiste até nas sem-teto, o sonho dela de voltar aos estudos fica para 2014. Admirável o pessoal que sacode os ombros para as pedras no caminho (eh, Drummond!), na firme intenção de subir na vida. Diante desses batalhadores anônimos, a gente tem vergonha dos nossos lamentos por meros pedriscos. Nov./13 M. Inês Prado minesprado@gmail.com Blogger: “Rabiscos de Minês”:minesprado.blogspot.com.br

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Viver no bem

Viver no bem A gente acaba entrando na dança do universo virtual, mesmo com certa relutância, o que tem sido tema recorrente explorado por articulistas e cronistas de renome. Hoje também sou feicista, por força não somente das atividades do cotidiano, mas pelas relações interpessoais. Confesso que tenho colhido bons frutos, através do Facebook e, o melhor, feito novas e boas amizades. Por isso cheguei à conclusão que redes sociais são como tudo nesta vida: valem a pena, desde que usufruídas com parcimônia e sensatez, focando nosso olhar nos aspectos positivos e desprezando o lixo. Vejam: nesta semana recebi, via sedex, um belo livro de culinária, “A Cozinha Vintage Paulista” – coletânea de receitas e fotos do século XX, de Vera Amaral Galvão, minha amiga do Face e a primeira a saber da minha intenção de publicar “A Família Rolinha e o Gato”. Não fora as explorações estimuladas pela rede e a curiosidade de descobrir quem está por trás de postagens mais significativas, amizades preciosas como a mencionada jamais aconteceriam. É um processo natural que obedece a vários passos, até você ter a impressão de que aquele (aquela) internauta entrou na sua vida, no seu cotidiano, e que, em breve, você o (a) incluirá no rol de amigos com A. “Eu sou aquela pessoa que acredita no bem, que vive no bem e que anseia o bem. É assim que eu enxergo a vida e é assim que eu acredito que vale a pena viver.” Atribuída à Clarice Lispector, tal afirmação combina com minha filosofia de vida. Muitas vezes ouço que devo lembrar que há muita gente má, que sou ingênua etc. e tal. Minha resposta reiterada é que, se tiver de olhar todo mundo com desconfiança, se tiver de desprezar essa minha índole, eu serei uma morta-viva. Desde menina só me sinto confortável e segura na harmonia, e assim permaneço. Caos, confusão, agressividade, maldade, hipocrisia etc. me causam tristeza, aflição, mal-estar profundos. Dizem que quem interage através das redes sociais é mascarado. Como sempre, há casos e casos. Nelas, percebem-se perfis de todo jeito e para todo gosto. É uma questão de separar o joio do trigo, de usar o crivo, para ficar com o que é do bem e para o bem, e esquecer o resto. Há perfis honestos, risonhos e francos. Um adulto razoavelmente inteligente saberá distingui-los. E, se por ventura, errar na avaliação, é simples. Basta cancelar o contato, aceitando o equivoco. Afinal, equivocar-se faz parte do nosso crescimento. Graças à internet, meu coração anda mais aquecido. Cruzar com ex-alunos, com filhos e netos, com amigos engolidos pelo mundo, com pessoas nota dez que talvez nunca conheçamos ao vivo, acompanhar fases alegres ou tristes de gente muito querida ou até desconhecida, orar pelos doentes e sofredores, torcer para que seus males encontrem solução, enfim, partilhar um pouco o caminho de cada um desses laços, é uma das inúmeras chances que temos de viver no bem. Vale a vida. M. Inês Prado Out./13 minesprado@gmail.com Blogger:”Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra de 19/10/2013

domingo, 6 de outubro de 2013

Fruto do elogio paterno: A Família Rolinha e o Gato

Fruto do elogio paterno: A Família Rolinha e o gato _ Filha, você deveria publicar um livro com suas coisas. _ Eu, pai?! _ Claro, por que não? Eu “banco”... Esse foi o maior elogio que recebi de meu querido pai. Nas entrelinhas, ele queria dizer que gostava dos meus rabiscos. E a maneira que escolheu para demonstrar sua aprovação foi bem sutil. A influência da educação germânica era acentuada nele. Havia grande dificuldade para manifestação de carinho, de concordância, de solidariedade. Tudo era meio velado, porém consistente, sincero. E mais: sua simples presença, ainda que silenciosa, passava uma tremenda segurança. Entretanto, era preciso sensibilidade para enxergá-lo além das aparências. Aqueles que conseguiam vê-lo com os olhos do coração e que valorizavam gestos discretos, mas importantes, esses conheceram o lado valioso daquele homem alto, com jeito de filósofo, como era frequente eu ouvir de nossos amigos e também daqueles que, mesmo com pouco convívio, guardaram essa impressão do meu querido. Ele era do tempo em que o homem de verdade chamava para si a responsabilidade de dar apoio às mulheres da família que eram sozinhas. Seu costume de enviar, todo mês, um auxílio para as irmãs distantes ou de nos dar algum dinheirinho para os alfinetes era mera decorrência de sua formação. Também se preocupava, e muito, em apoiar as órfãs de pai, pois sabia o quanto a figura masculina faz falta na vida de uma garota. Creio que ele deva ter sofrido por ser resistente à demonstração de elogios. Porque a gente padece, quando não consegue verbalizar nosso aplauso. Mas é da vida, cada um na sua, refletindo, no caminho à frente, a educação recebida. Sem dizer que a força do sangue também conta e muito... Pois é, nos anos 90, meu pai sugeriu que eu partilhasse meus escritos. Desde então, sentia-me em dívida com ele. Até andei organizando arquivos, porém algo inexplicável me impedia outros passos. Finalmente parti para a prática, mas fiz questão de obedecer ao ciclo da vida: a infância é meu primeiro objetivo. Assim, como presente pelo Dia da Criança, nasce o fruto do elogio paterno: “A Família Rolinha e o gato” – para ler e colorir. Trata-se de produção independente, sem burocracia, saída do forno direto para os pequenos leitores-arteiros, pois o tempo urge. Desculpe-me o atraso, pai. M. Inês Prado Out./13 minesprado@gmail.com Blogger:”Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Crônica louca

Crônica louca O jornal nosso de cada dia (vide Cotidiano recente) não é apenas uma dependência, é masoquismo, misto de prazer e sofrer. O prazer de estar atualizado vem junto com o sofrimento de ver tantas barbaridades acontecendo por todo lado. Inútil dizer coisas triviais, como ‘o mundo não tem conserto’ e outras. Nossos ouvidos cansaram. A bestialidade existe desde sempre. Apenas, hoje, a tecnologia avançada a traz de baldada. Noutros tempos, as más novas andavam devagar, quase parando. Agora, o que acontece aqui é sabido do outro lado do planeta em segundos, sem preparo do terreno... Assim, o estado de choque virou rotina. Um dia a mídia divulga que o garoto Marcelinho, 13 anos, estudante, é suspeito de liquidar quatro familiares e, depois, cometer suicídio. Ele teria planejado tudo com riqueza de detalhes, alguns por inspiração das suas brincadeiras. A fuga, após a matança, era provável. Havia uma mochila preparada com roupas, papel higiênico, dinheiro. Talvez por arrependimento, mudara de ideia e se suicidara. Simples assim o quadro pintado ante o olhar apatetado do cidadão em sintonia com o mundo. Suposições, pré-juízo leviano. E os dias se sucedem, trazendo violências diretas e indiretas, uma delas a infância agredida, ceifada, invadida por conduta desumana, tudo sob o nosso nariz. Na Síria o garoto Issa, 10 anos trabalha na restauração de artefatos bélicos, ajudando o pai e o Exercito Livre da Síria. Pelo visto, não frequenta a escola nem brinca, já que passa cerca de dez horas trabalhando. As ilustrações da reportagem mexem com o coração da gente (vide Folha, A15 – 11/9/2013). Doutro país distante, de crenças e valores bem diversos dos nossos, vem o absurdo: meninas púberes são protagonistas de casamento comunitário com marmanjos, muitos com mais de trinta. Dias depois, esta notícia: a morte de uma menina de oito anos, por hemorragia. Causa? Na relação sexual, teve o útero perfurado. Filme de terror não me causaria tanto impacto. Como a historia é cíclica, chegará o momento do ‘fundo do poço’, como aconteceu em outras eras. Esse fundo do poço seria, a meu ver, uma pane total dos meios de comunicação, trabalho e lazer. E como uma coisa puxa outra, sem iluminação nem água encanada. Caótico, não? Vejo o povo vagando, como no ‘Ensaio sobre a cegueira’, de José Saramago. Para quem não leu essa obra-prima: o caos se instala, após uma epidemia que deixa todo mundo cego, exceto a esposa de um médico. Dá para imaginar a criançada e a juventude, sem as telinhas e teclas? E os adultos, sem engenhocas básicas, como telefone, computador & internet, impressora, máquina de lavar louça, roupa, geladeira? Imagine-se privado de todos os recursos que você tem, hoje, na palma da mão. Imagine-se carregando baldes d’água do córrego São João ou do Jaguari, não para se banhar, pois isso você fará in loco, mas para se livrar dos dejetos que empesteiam sua casa, onde a parafernália de material de limpeza será inútil. Imagine-se, mesmo, a pé de tudo, tendo de bolar sua sobrevivência. Vá fundo nessa viagem. Falando nisso, sempre abominei a pretensão do homem, ao ir à Lua, (se é que foi), já que, aqui, há tantas coisas à espera de solução. Agora, ao findar essa crônica louca, mudei de ideia. Muita gente deveria ir pro espaço e passar uns tempos por lá, para entender que somos nada, diante da magnitude do universo.

Crônica da crônica: minha sala é um museu

Crônica da crônica: minha sala é um museu Dia destes uma professora das boas perguntou-me como ensinar crônica aos alunos. Questão danada de responder. Seria mais fácil abrir um jornal e apontar-lhe crônicas dos ótimos Ruy Castro, Carlos Heitor Cony e outros. Ou ainda uma coletânea de crônicas machadianas, em que burros falantes satirizam o bicho-homem. Nos últimos tempos, explicações teóricas me provocam certa preguiça, não sei por quê. Se tivesse que dizer algo que preste à mestra e amiga, dir-lhe-ia: recomende a seus pupilos, como primeiro passo, que usem lupa, que reparem em tudo o que se passa no dia a dia, que pausem o olhar nas pequenas coisas, até descobrir que elas são grandes e importantes. Assim nasce a crônica, de parto normal e sem fórceps, como deve ter nascido “Impressões digitais”, do singular Antonio Prata (Folha, C2, 22/9/13), em que ele viaja, divertidamente, ao observar dois dedões que caem no seu campo de visão, enquanto sentado na praia. Resumo: um dedão carrega tudo de feio e ruim, todas as sujeiras do mundo; outro, só falta cantar, de tão lindo! Hoje, dei uma de Sherlock Holmes e analisei minha sala, verdadeiro museu cheio de coisas carregadas de significados, que me inspirariam crônicas pro resto da vida. É a mesinha de 1960, escondida sob o mármore rosado que ganhei da mãezinha emprestada, minha sogra, mais antigo do que a mesa que ele tanto valoriza, ao ocultar lascas e manchas deixadas pelas traquinagens da criançada e pelos copos molhados dos marmanjos descuidados. São as cadeiras velhinhas, uma de balanço, torneada, com assento de palhinha, da avó de sangue alemão, sisuda demais, sempre à espera de que os netos lhe pedissem a bênção. Outra, confortável, de espaldar alto, na qual um padreco desajeitado ficou no cai não cai, com as pernas balançando no ar. É o lampião de cobre, com vidros bisotè, comprado num yard sale (bazar ao ar livre, onde se vendem coisas que não têm serventia para os donos da casa) e que resistiu a dez horas de viagem, prensado numa mala estufada. Que momentos únicos essa peça artesanal testemunhara, enquanto espalhava luz de vela para os notívagos românticos, talvez tecendo cartas de amor ou trocando juras, carícias? São os apoios em pedra sabão para a coletânea de Fernando Pessoa: duas cabeças de cavalo perfeitas. Por coincidência, junto ao conjunto, pousam dois estribos de estanho todo trabalhado. Imagino histórias dos pés que se escoraram neles. Seriam pés de fada ou de algum brutamonte picareta, elemento fincado neste solo gentil, desde sempre? Mais longe, na parede de tijolo à vista, meus pais queridos, retratados pela prima artista, abençoam-me dia e noite. O amor deles daria um compêndio em prosa e verso, recheado de lições de respeito, abnegação e carinho velado, porém autêntico. Satisfeita, pego um volume de Pessoa, abro-o aleatoriamente e leio: “Meu senso intimo predomina de tal maneira sobre meus cinco sentidos que vejo coisas nesta vida – acredito-o - de modo diferente de outros homens. Há para mim – havia – um tesouro de significados numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato.” (Fernando Pessoa, ‘Obras em prosa, Eu profundo’, p. 37, Editora Nova Aguilar, 1985). Pessoa e Machado, toques permanentes nas nossas divagações. M. Inês Prado minesprado@gmail.com Blogger:minesprado.blogspot.com.br

sábado, 14 de setembro de 2013

NINGUÉM É DE NINGUÉM

Ninguém é de ninguém Sexta-feira, manhã de sol. Maricota já fez a santa caminhada, agora acaba de sair da ótica, onde foi - aleluia! - ajustar os óculos. Percebe que uma amiga que ela não vê há muito tempo vem vindo. Imagina que conversarão por alguns bons minutos, já que a outra é curiosa, vai querer saber por que Maricota anda sumida etc. e tal. De fato, assim que se cumprimentam com os beijinhos automáticos, a outra vai direto à satisfação da curiosidade. Maricota explica que se mudou do centro para um bairro mais sossegado. Apartamento? Não, não, casa térrea, lugar muito arejado e tranquilo. E a casa do centro? Maricota diz que está para alugar ou vender, tanto faz. A outra quer saber o preço de uma coisa ou outra. Curiosidade ok. Despedem-se. Maricota retoma os passos, vai em direção à padaria mais próxima. Já ia se esquecendo do queijo fresco, artesanal, de boa procedência. Mas os pensamentos ficam lá trás, na amiga que não via há séculos e que “só” quis bisbilhotar sobre preço de venda ou de locação da casa velha de Maricota. Então, vem-lhe à mente o termo da moda – pertencimento. Será que Maricota ainda pertence a este mundo onde amigos ou conhecidos passam um tempão sem se ver e, quando se cruzam, o “tudo bem?” é pró-forma e o papo logo deságua no cifrão? “Ninguém é de ninguém, Na vida tudo passa, Ninguém é de ninguém, Até quem nos abraça.” Eta, bolerão, sucesso nos anos 60, composição de Umberto Silva, Toso Gomes e Luiz Mergulhão , com interpretação do magistral Cauby Peixoto e também de outros, com vozes personalíssimas: o inesquecível Altemar Dutra e o feio, porém carismático, Agostinho dos Santos. Maricota desce a ladeira como se estivesse num salão de baile. Na base do cheek to cheek, passeia pelo bolero e pela imagem de Altemar Dutra, que parece ter descido lá das alturas. Bendito seja esse saudosismo que a ajuda a pôr ordem na miscelânea de ideias e emoções. A realidade de Maricota é a mesma de todos os mortais. Neca de pertencimento, por aqui. Quem acha que pertence a alguém ou a algum lugar está fora do ar. Ninguém é de ninguém. Melhor deixar de lado o questionamento inútil, pois logo mais cruzará com outro alguém e a sensação de não pertencimento se repetirá, seguida da mesma indagação e resposta idem. Com razão o polêmico Luiz Felipe Pondé, que conclui uma de suas crônicas assim: “O romantismo nos legou esse sentimento sem cura de que criamos um mundo no qual não nos reconhecemos.” M. Inês Prado Set./13 minesprado@gmail.com Blogger: ”Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br Publicação no Edição Extra em 14/9/2013

sábado, 31 de agosto de 2013

O BATOM E O PEDINTE

O batom e o pedinte O batom escapou-lhe das mãos. Ela abaixou-se para pegá-lo, mas os dedos nodulosos não colaboravam mais. Tinha que fazer mil tentativas, até conseguir apanhar as coisas que deixava cair. Justiça seja feita: não só os dedos não ajudavam, mas também a coluna há muito travada como um cabo de vassoura teimoso que se recusa a vergar. O batom rolava pra lá e pra cá, em franco deboche das investidas daqueles dedos impacientes e desastrados. Num momento foi parar junto a um sujeito grandalhão que se fez de cego. Ela puxou o batom com o pé e, afinal, conseguiu agarrá-lo. Arre! Ela não estava só. Caminhava com uma amiga. Retomaram o blá-blá-blá, enquanto ela tentava encontrar um papel qualquer para embrulhar o batom meio melecado pelo tombo. A tampa rachada tornara-se inútil. Ela estancou o passo, abaixou-se, ouvindo o ranger do próprio corpo. Pegou um papel de sorvete jogado num canto da calçada e enrolou o batom nele, diante da amiga meio aparvalhada com aquilo tudo. As duas caíram na gargalhada. ********** Acordou com a própria risada misturada ao barulho da água que batia na calha. Esticou-se, pulou da cama, abriu a cortina. Chovia fino. Olhar para o céu e agradecer por mais um dia é o primeiro gesto dela de manhã. Se há sol ou chuva, tanto faz. Ainda rindo, decidiu rabiscar, com urgência, a crônica semanal, antes que o sonho se dissipasse. Não é à toa que os analistas pedem aos pacientes que tenham papel e lápis no criado-mudo. O insignificante, mas caríssimo bastãozinho Payot iria parar no jornal. Engoliu o café da manhã, a remediada, ignorou a louça na pia, o cabelo desgrenhado, o robe, o quarto desarrumado. O batonzinho divertia-se à custa dela: afinal, forçara-a a alterar toda a rotina matinal. Insignificante ele? Só na cabeça dela, uma incoerente, pois antes mesmo de preparar o café já tinha ligado o PC, tamanha era a pressa de registrar o sonho. Ansiosa, ela começou a digitação, ao mesmo tempo em que questionava as leituras da noite anterior, buscando explicações para o sonho que a fizera acordar rindo até. Seria por causa ‘Dos escombros de Pagu’, de Tereza Freire, dando ênfase ao batom vermelho usado e abusado pela primeira presa política no Brasil (23/8/1931)? Ou seria culpa do “Apelo dramático de Rose Marie Muraro”, na Ilustrada – Folha de S. Paulo de 26/8? Aos 83 anos, Rose se declara Patrona do Feminismo Brasileiro (2005), além de cidadã honorária de Brasília e São Paulo e escolhida duas vezes como uma das mulheres do século... Agora, na penúria, pede socorro. Em carta a amigos, diz-se semicega e semiparalitica. Segundo ela, a ministra Eleonora Menicucci e anônimos sensibilizaram-se. Sua conta bancária tem recebido depósitos. A cronista deixa os porquês do sonho pra lá. Conclui, apenas, que o batom nada tem de insignificante, pois, apesar de poucas inovações através dos séculos, ele dança e rola por aí, colore bocas, rabisca recadinhos em espelhos e muito mais. Por sua vez, os meios de angariar recursos cada vez mais sofisticados ameaçam a figura do pedinte cara a cara: nas redes sociais, ONGs e cidadãos comuns apelam para os corações caridosos; inovando, jornais tradicionais publicam SOS de pidonhos (de elite?). M. Inês Prado Ago./13 Blogger:’Rabiscos de Minês’: minesprado.blogspot.com.br minesprado@gmail.com O batom e o pedinte O batom escapou-lhe das mãos. Ela abaixou-se para pegá-lo, mas os dedos nodulosos não colaboravam mais. Tinha que fazer mil tentativas, até conseguir apanhar as coisas que deixava cair. Justiça seja feita: não só os dedos não ajudavam, mas também a coluna há muito travada como um cabo de vassoura teimoso que se recusa a vergar. O batom rolava pra lá e pra cá, em franco deboche das investidas daqueles dedos impacientes e desastrados. Num momento foi parar junto a um sujeito grandalhão que se fez de cego. Ela puxou o batom com o pé e, afinal, conseguiu agarrá-lo. Arre! Ela não estava só. Caminhava com uma amiga. Retomaram o blá-blá-blá, enquanto ela tentava encontrar um papel qualquer para embrulhar o batom meio melecado pelo tombo. A tampa rachada tornara-se inútil. Ela estancou o passo, abaixou-se, ouvindo o ranger do próprio corpo. Pegou um papel de sorvete jogado num canto da calçada e enrolou o batom nele, diante da amiga meio aparvalhada com aquilo tudo. As duas caíram na gargalhada. ********** Acordou com a própria risada misturada ao barulho da água que batia na calha. Esticou-se, pulou da cama, abriu a cortina. Chovia fino. Olhar para o céu e agradecer por mais um dia é o primeiro gesto dela de manhã. Se há sol ou chuva, tanto faz. Ainda rindo, decidiu rabiscar, com urgência, a crônica semanal, antes que o sonho se dissipasse. Não é à toa que os analistas pedem aos pacientes que tenham papel e lápis no criado-mudo. O insignificante, mas caríssimo bastãozinho Payot iria parar no jornal. Engoliu o café da manhã, a remediada, ignorou a louça na pia, o cabelo desgrenhado, o robe, o quarto desarrumado. O batonzinho divertia-se à custa dela: afinal, forçara-a a alterar toda a rotina matinal. Insignificante ele? Só na cabeça dela, uma incoerente, pois antes mesmo de preparar o café já tinha ligado o PC, tamanha era a pressa de registrar o sonho. Ansiosa, ela começou a digitação, ao mesmo tempo em que questionava as leituras da noite anterior, buscando explicações para o sonho que a fizera acordar rindo até. Seria por causa ‘Dos escombros de Pagu’, de Tereza Freire, dando ênfase ao batom vermelho usado e abusado pela primeira presa política no Brasil (23/8/1931)? Ou seria culpa do “Apelo dramático de Rose Marie Muraro”, na Ilustrada – Folha de S. Paulo de 26/8? Aos 83 anos, Rose se declara Patrona do Feminismo Brasileiro (2005), além de cidadã honorária de Brasília e São Paulo e escolhida duas vezes como uma das mulheres do século... Agora, na penúria, pede socorro. Em carta a amigos, diz-se semicega e semiparalitica. Segundo ela, a ministra Eleonora Menicucci e anônimos sensibilizaram-se. Sua conta bancária tem recebido depósitos. A cronista deixa os porquês do sonho pra lá. Conclui, apenas, que o batom nada tem de insignificante, pois, apesar de poucas inovações através dos séculos, ele dança e rola por aí, colore bocas, rabisca recadinhos em espelhos e muito mais. Por sua vez, os meios de angariar recursos cada vez mais sofisticados ameaçam a figura do pedinte cara a cara: nas redes sociais, ONGs e cidadãos comuns apelam para os corações caridosos; inovando, jornais tradicionais publicam SOS de pidonhos (de elite?). M. Inês Prado Ago./13 Blogger:’Rabiscos de Minês’: minesprado.blogspot.com.br minesprado@gmail.com O batom e o pedinte O batom escapou-lhe das mãos. Ela abaixou-se para pegá-lo, mas os dedos nodulosos não colaboravam mais. Tinha que fazer mil tentativas, até conseguir apanhar as coisas que deixava cair. Justiça seja feita: não só os dedos não ajudavam, mas também a coluna há muito travada como um cabo de vassoura teimoso que se recusa a vergar. O batom rolava pra lá e pra cá, em franco deboche das investidas daqueles dedos impacientes e desastrados. Num momento foi parar junto a um sujeito grandalhão que se fez de cego. Ela puxou o batom com o pé e, afinal, conseguiu agarrá-lo. Arre! Ela não estava só. Caminhava com uma amiga. Retomaram o blá-blá-blá, enquanto ela tentava encontrar um papel qualquer para embrulhar o batom meio melecado pelo tombo. A tampa rachada tornara-se inútil. Ela estancou o passo, abaixou-se, ouvindo o ranger do próprio corpo. Pegou um papel de sorvete jogado num canto da calçada e enrolou o batom nele, diante da amiga meio aparvalhada com aquilo tudo. As duas caíram na gargalhada. ********** Acordou com a própria risada misturada ao barulho da água que batia na calha. Esticou-se, pulou da cama, abriu a cortina. Chovia fino. Olhar para o céu e agradecer por mais um dia é o primeiro gesto dela de manhã. Se há sol ou chuva, tanto faz. Ainda rindo, decidiu rabiscar, com urgência, a crônica semanal, antes que o sonho se dissipasse. Não é à toa que os analistas pedem aos pacientes que tenham papel e lápis no criado-mudo. O insignificante, mas caríssimo bastãozinho Payot iria parar no jornal. Engoliu o café da manhã, a remediada, ignorou a louça na pia, o cabelo desgrenhado, o robe, o quarto desarrumado. O batonzinho divertia-se à custa dela: afinal, forçara-a a alterar toda a rotina matinal. Insignificante ele? Só na cabeça dela, uma incoerente, pois antes mesmo de preparar o café já tinha ligado o PC, tamanha era a pressa de registrar o sonho. Ansiosa, ela começou a digitação, ao mesmo tempo em que questionava as leituras da noite anterior, buscando explicações para o sonho que a fizera acordar rindo até. Seria por causa ‘Dos escombros de Pagu’, de Tereza Freire, dando ênfase ao batom vermelho usado e abusado pela primeira presa política no Brasil (23/8/1931)? Ou seria culpa do “Apelo dramático de Rose Marie Muraro”, na Ilustrada – Folha de S. Paulo de 26/8? Aos 83 anos, Rose se declara Patrona do Feminismo Brasileiro (2005), além de cidadã honorária de Brasília e São Paulo e escolhida duas vezes como uma das mulheres do século... Agora, na penúria, pede socorro. Em carta a amigos, diz-se semicega e semiparalitica. Segundo ela, a ministra Eleonora Menicucci e anônimos sensibilizaram-se. Sua conta bancária tem recebido depósitos. A cronista deixa os porquês do sonho pra lá. Conclui, apenas, que o batom nada tem de insignificante, pois, apesar de poucas inovações através dos séculos, ele dança e rola por aí, colore bocas, rabisca recadinhos em espelhos e muito mais. Por sua vez, os meios de angariar recursos cada vez mais sofisticados ameaçam a figura do pedinte cara a cara: nas redes sociais, ONGs e cidadãos comuns apelam para os corações caridosos; inovando, jornais tradicionais publicam SOS de pidonhos (de elite?). M. Inês Prado Ago./13 Blogger:’Rabiscos de Minês’: minesprado.blogspot.com.br minesprado@gmail.com

sábado, 24 de agosto de 2013

CHÁ CONFORTÁVEL

Chá confortável Oba, tem baile no sábado. Elas combinam tudo, quem vai com quem, quem vai dirigir, para que outras possam tomar um copinho de vinho. Pensam nos preparativos, vestido, cabelo, unhas. Enfim, são madurescentes cheias de vida. Às nove da noite em ponto, reúnem-se e pegam a estrada. O baile é a oito quilômetros de onde a turminha mora, um nadica diante de tanta expectativa. O luar inspira muita coisa, além de ajudar na iluminação da estrada. Que alívio para os olhos atrapalhados pela catarata! O blá-blá-blá corre solto, falas cruzadas são a regra, quando a mulherada se junta. Que horror, nada se entende, nada se completa! O ventinho que entra pelos vidros semiabertos leva pra longe as ideias truncadas. Logo as poderosas chegam à cidadezinha, elas e seus sonhos repetitivos, mas jamais desistidos. Ao contrário, eles sobrevivem num cenário onírico, com salão de mármore repleto de gente elegante, acordes inebriantes de Glenn Miller, Richard Clayderman, Ray Conniff, rodopios invejáveis dos pés de valsa honrando os grandes da MPB e da música internacional, como Chico Buarque, Bethânia, Jobim, Vinicius, Cartola, Johnny Mathis, Frank Sinatra, Nat King Cole, Dionne Warwick, Sarah Vaughan e outros. Carro estacionado, descem, ajeitam a roupa e lá vão elas, apoiando-se umas nas outras, driblando o calçamento traiçoeiro. Os pezinhos das fadas que não abrem mão dos saltos. O quarteto entra no Clube da Saudade (tinha que ser esse o nome do salão?), pagam a mesa (de pista, por favor!) e enfrentam a escadaria, agarradas ao corrimão. Buscam seus lugares como quem busca camarote vip. Despem os casacos, empilham as bolsas, escolhem o ângulo das cadeiras, virando-as pra lá e pra cá, num ritual cômico. Não para as sonhadoras, mas para qualquer observador minimamente crítico e por fora de alguns senões: todas querem ficar de frente para a pista de dança. Pescoço virado nem pensar! Culpa da artrose, senhores. Música, maestro. Perdido no emaranhado da fiação e das caixas acústicas gigantes, um varapau de camisa listrada anuncia, com pompa: _Uma seleção para os casais apaixonados. _ dando sinal para dois músicos, cada qual com um instrumentinho eletrônico paupérrimo, e soltando um estridente e desafinado Dio como ti amo (Gigliola Cinquetti). Pares ‘in love’ ou no ‘faz de conta’ invadem a pista, enquanto avulsas incorrigíveis queimam fosfato em impasses bobos: “Por que será que o grisalho não me tira?”, “Será que ‘ele’ vai cair do céu?”, “Será que vou tomar chá de cadeira?”. Será? Será? Logo três free-dancers enlutados põem mãos à obra. O quarteto faz as contas: cada uma dançará três seleções. Noutros tempos, elas não perdiam uma, havia avulsos de sobra, com vantagem: eram exímios dançarinos, além de cavalheiros. Mas eles rarearam num piscar de olhos e não houve reposição, por carência de material. Triste. (Para quem não sabe, free-dancer é o sujeito pago pelo clube para dançar com todas as damas, sem discriminação. Em alguns casos, elas pagam um free exclusivo, com rateio da despesa, se ele dançar com um grupo. Se dançar só com uma, a nota é preta, garante a freguesia. Mas quem ama a dança não vai ao baile para esquentar a cadeira. Então, a saída é fazer de um baileco, com free ou sem free, o baile dos sonhos. É simples: feche os olhos e deslize nos braços do príncipe, num salão de mármore...) As horas se arrastam, o baile rola morno. Uma das quatro madurescentes desabafa: _ Ainda bem que esta cadeira é boa. Pelo menos toma-se um “chá” confortável! minesprado@gmail.com Blogger:Rabiscos de Minês: minesprado.blogspot.com.br

QUERO SER O CHICO

Quero ser o Chico Nas últimas semanas, Chico tem sido notícia. O macaquinho, criado por uma senhora de São Carlos há 37 anos, fez as autoridades se mexerem. Devido a denúncias de maus-tratos, o bichinho foi levado para longe do berço. A reação dos fãs do Chico foi de revolta. Onde já se viu retirar do seio da “família” alguém tão amado? E, por certo, divertido. Choveram protestos, reivindicações, abaixo-assinados. Após mil exames e conjeturas, Chico, identificado como do sexo feminino e, por isso, rebatizado de Carla, acabou sendo devolvido, no dia 19/8, para as mãos da senhorinha que, inconformada com a separação, estava inconsolável e até doente. Perder um companheiro de tanto tempo não é nada fácil, dói demais. A alegria voltou a reinar na casinha simples de São Carlos -SP. Apenas alguns profissionais da área de proteção à fauna ficarão atentos, para verificar se a dona do Chico cumpre as orientações que deles recebeu: alimentação à base de ração, cálcio e frutas. Assim, rapidinho o impasse foi resolvido, sem embromação nem burocracia. No dia em que Chico voltou a ser feliz, dormiu gostoso e acordou muito disposto, retomando a rotina a que está acostumado, inclusive a bagunça nos cômodos da casa. Ele adora revirar roupas de cama e espremer tubo de pasta dental. Sempre que uma historia tem final feliz a gente comemora, mesmo longe dos fatos. Mas nem todo mundo tem a sorte de Chico, o atendimento relâmpago das autoridades, a presteza da máquina pública. Ao contrário. Enquanto Chico foi o centro das atenções em todo canto deste Brasil e até lá fora, cidadãos continuam a amargar o descaso do Estado, sobretudo em relação à saúde. A TV não se cansa de mostrar inúmeros pacientes à espera de atendimento médico; outros à beira da morte, desassistidos, muitas vezes agonizantes, jogados em macas espalhadas por corredores imundos; outros ainda a implorar por consultas imediatas, remarcadas ou marcadas para ano que vem ou sabe deus quando. Nenhuma expressão há para descrever o descalabro dessa realidade tão negra. Chico já era historia, agora é celebridade, com direito a acompanhamento, visitas, fã clube multiplicado. E, por ter atraído os olhares do mundo, beneficiou sua protetora, agora renovada diante das câmeras de TV, cabelos cuidados e outras mudanças. Até quando esse estado de graça vai durar não se sabe. É provável que até o caso cair no esquecimento. Mas, por ora, diante de tanto chamego dispensado ao simpático macaquinho (na verdade, macaquinha), é provável que muita gente por aí diga, com uma pontinha de inveja: _ Também quero ser o Chico. M. Inês Prado Agosto/13 minesprado@gmail.com Blogger: ‘Rabiscos de Minês’: minesprado.blogspot.com.br PUBLICAÇÃO NO EDIÇÃO EXTRA DE 24/8/2013

sábado, 10 de agosto de 2013

VOCÊ DOMINA SUA FERA INTERIOR?

Você domina sua fera interior? _ Mãe, que história é esta de um juiz que foi esquartejado e que penduraram a cabeça dele numa estaca? Não soube responder ao meu filho sobre esse crime hediondo. Estava por fora, embora devore a FOLHA todo dia. Iria conferir, pois só assim poderia dar-lhe algum retorno. Faço-o agora, apesar de ser avessa à escrita do tipo “se espremer, sai sangue”. A Folha de S. Paulo de 4/8/13, C3, traz o desdobramento do quadro macabro que foi plantado em Centro do Meio, lugarejo de 200 famílias, na zona rural de Pio XII, ao sul de São Luís, no Maranhão. No início de julho, durante um jogo de futebol, o árbitro Otávio Cantanhêde, 19 anos, esfaqueou o jogador Josemir Abreu, 30 anos, sendo este levado para o hospital. Aqueles que viram a cena agarraram o juiz, enquanto esperavam notícias do esfaqueado. Ao saberem que Josemir havia falecido, muniram-se de uma foice e esquartejaram Otávio. Não satisfeitos, decapitaram-no, brincaram de “bola” com a cabeça, antes de pendurá-la numa estaca junto ao campo de futebol. Horripilante! Segundo a reportagem, os moradores locais estão apavorados e, com receio de vingança, evitam sair de casa, vivem trancados. Além disso, as crianças sofrem represálias na escola e o povo da área urbana se benze, ao cruzar com o da zona rural. Pode? Dá para imaginar algo assim, nos dias de hoje? Voltamos à Idade da Pedra? Após o choque que a descrição dos fatos provoca, a primeira reflexão que me ocorre é que todo indivíduo tem uma fera dentro de si. Se ela desperta e se torna indomável, consequências imprevisíveis podem advir. Ai do mundo! O que poderia ser feito para evitar episódios tão brutais? Será que as pessoas esquecem que arma não é somente um revólver? Será que é prudente portar certas coisas que não sejam uma “pluma”, ao adentrar certos espaços onde há concentração de público sujeito a se envolver em confusão e brigas, como em jogos de futebol, shows, passeatas, protestos e outros eventos? Pensando bem, estou “viajando”, já que os “black blocs” – grupos mascarados, vestidos de preto - aí estão, belos e formosos, a desfilar ante as câmeras a imagem desafiadora de quem tudo pode porque nada acontece. Estar munido de barra de ferro, para depredar o que é associado ao capitalismo, é sinal de poderio da fera prestes a soltar-se da jaula. Se a valentia é tanta, por que a burca? Qual a intenção do indivíduo que busca o anonimato, ostentando qualquer artefato a título de arma? _ Chega de chorar! Deixa ver. Não quebrou a perna, não! Pronto, já passei álcool. Agora vamos levantar e andar! _ exemplo de fala corriqueira de muitos pais. É comum a criança ser treinada, desde cedo, para refrear o choro e outras manifestações de sentimento. Mas, raramente, ela é orientada a treinar o controle da agressividade. Ao contrário, a “ferinha” é alimentada a todo instante, incentivada: “Não traga desaforo pra casa: se baterem em você, devolva na hora!”. Assim, expande-se no dia a dia da escola, nas brincadeiras, cria força, fica enorme, poderosa. Qualquer provocação e deslize, até mesmo um esbarrão casual, e pronto: a fera acorda e zás, sai de perto! Os estragos podem ser irreversíveis. Talvez seja útil, como medida profilática, encetar pesquisas sobre o assunto, além de acrescentar, às entrevistas, fichas de seleção, enquetes de jornais e revistas, redes sociais e outras avaliações de nosso perfil, a pergunta: “Você domina sua fera?” Ago./13 minesprado@gmail.com Rabiscos de Minês:minesprado.blogspot.com.br PUBLICAÇÃO NO EDIÇÃO EXTRA EM 10/8/2013

sábado, 3 de agosto de 2013

A visita de Francisco e seus efeitos - publicação no Edição Extra de 3/8/2013

A visita de Francisco e seus efeitos 25 de julho de 2013. O papa Francisco visita a favela de Varginha, no Complexo de Manguinhos, periferia do Rio de Janeiro, onde moravam os invisíveis, até poucos meses atrás. Invisíveis? Sim, pois só mereceram olhares do poder público, a partir do momento em que o local foi eleito para receber Francisco.Mereceram até atiradores de elite estrategicamente posicionados nos telhados da favela, para a proteção do papa (FOLHA, A8, 25/7). _ “Tal descaso, Pai Amado, ficou para trás a partir do momento do anúncio de sua visita à comunidade” – afirmou Rangler Irineu dos Santos, morador que saudou Francisco. Em discurso corajoso, o jovem enfatizou que a coleta de lixo, a troca de caçambas, a varrição e outros serviços, como asfalto, iluminação, só tiveram espaço na rotina de Varginha nos últimos tempos. Em suma, preparava-se “a casa” para receber o hóspede ilustre e causar-lhe ótima impressão. Será que a sabedoria de Francisco pode ser subestimada tanto assim? A atuação daqueles que deveriam estar agarrados aos objetivos próprios de quem foi eleito pelo povo é similar à dos moribundos contritos: de repente, são instados a higienizar a alma, com temor do juízo final. É também similar à atuação da dona de casa, às vésperas de receber hóspedes, ou da mulher, à espera do amado. Preparativos listados e ticados, à medida em que são cumpridos com minúcia de detalhes. Gostaria de estar aboletada em alguma árvore de Varginha, para observar se também fabricaram jardins a jato, bem coloridos e saudáveis, para impressionar e desviar a atenção do arguto Pontífice, rodeado dos que se dizem “ invisíveis”. O pior é que a tentativa de deixar tudo “bonitinho” cobriu-se de fiascos, como o lamaçal no Campus Fidei, em Guaratiba (mais uma “obra” a ensejar investigações), obrigando a transferência, para Copacabana, dos eventos que aconteceriam ali, pane no metrô, desencontro de trajetos, “trombada” dos fiéis com o Bando das Vadias (mulheres seminuas, ostentando símbolos religiosos em partes do corpo nada convencionais) e muito mais. Será que os forasteiros voltarão para outras efemérides no Rio? Reclamações não faltaram. Segundo noticiado e exibido pela mídia, Francisco chegou à Varginha de papamóvel, mas, após orar na capela São Jerônimo Emiliani, saiu a pé, em meio à multidão. Aclamado, tocado, presenteado, distribuiu afagos, beijou pequeninos, ofereceu mimos, driblando a segurança ostensiva – homenzarrões de terno e gravata, os cães de guarda de praxe. Francisco, que parece muito à vontade e seguro em meio aos humildes, deve se sentir bem desconfortável com a barreira que insiste em manter seu rebanho à distância. Por mim, posso dizer que me senti envergonhada ante a visão dos colarinhos brancos que rodeavam o Papa, na cerimônia de entrega das chaves da cidade, poucas horas antes da ida dele à comunidade de Varginha. Será que algum deles teve vontade que um alçapão se abrisse e o levasse dali, junto com sua pequenez? Será que todos eles conseguiram, sem nenhum pejo, mirar o Papa nos olhos? Oscar Schmidt, o inesquecível ídolo do basquete, que luta contra um câncer, foi a única coisa linda que vi naquele instante: ajoelhado e contrito, recebendo a bênção papal. Em tempos em que a desconfiança campeia nos corações desesperançados, tudo o que se deseja é que a vinda do Papa Francisco seja, de fato, um marco divisório entre o Brasil de ontem e o daqui para a frente. Que os olhares não percam o foco e que não se esperem anúncios de visitas pomposas, para subir às favelas e lá brincar de casa de bonecas, fazendo de conta que ali também vive gente. Para Khalil Gibran (1883-1931), poeta e pensador libanês, “Trabalhar com amor é vínculo com os outros, com nós mesmos e com Deus.” Papa Francisco parece seguidor desse preceito, o que poderia motivar um bloco gigantesco de trabalhadores brasileiros, amorosos e comprometidos, com políticos, governantes e autoridades puxando a fila, dispostos ao ombro a ombro com o povo. M. Inês Prado Julho/13 Blog: “Rabiscos de Minês”: minesprado.blogspot.com.br

domingo, 28 de julho de 2013

O nome de Deus

                                                          O nome de Deus

     Tenho observado que invocar o Pai a toda hora está na moda: ‘Deus te abençoe’, expressão que anda na boca de todo mundo, ao vivo ou via engenhocas, com a intenção de agradecimento ou  despedida.
     Antigamente, pedir a bênção aos avós, pais ou padrinhos era sinal de profundo respeito. Se bem que o “pedinte” às vezes cumpria um ritual imposto pela educação severa, sem convicção ou noção do ato. E, quando não queria submeter-se a tal, dava um jeitinho de furtar-se, driblando a família, “escapando de fininho”, como dizia meu velho pai, em relação a um dos meus irmãos que odiava pedir a bênção a minha avó paterna. Talvez o sangue dela, de tempero alemão, criasse alguma barreira entre ela e nós outros, sei lá.
    Hoje é raríssimo alguém pedir a bênção, mas, em contrapartida, é comum  almejar bênçãos Dele, como se usam  ‘até logo’, ‘obrigado (a)’ e outras expressões que, no dia a dia, as pessoas empregam, de modo irrefletido, automático, com o pensamento nas compras para o feriadão, na viagem do filho, na manicure, na consulta médica e noutras questões que reinam soberanas nas cabeças sempre muito ocupadas para se concentrarem no interlocutor. É a tão conhecida falsa presença que somente a alma  sensível é capaz de notar, embora disfarce, por delicadeza. Na verdade, é horrível perceber que estamos falando ao vento.
    Um dos dez mandamentos que a criançada aprende no catecismo determina: “Não tomar seu Santo nome em vão.” Por isso, noutros tempos, levava-se o maior pito, quando se  dizia ‘Juro por Deus’, ao mesmo tempo em que se cruzavam os dedos sobre os lábios.
    Hoje, ninguém mais fala em levar pito, embora motivos para levá-lo haja de sobra. Também não se jura mais por Deus, para se fazer acreditado, mas falar mentiras no lugar de verdades é costume agarrado ao homem igual carrapato. Por sua vez os espirros, que já nascem com a gente,  não merecem mais  o ‘Deus te crie’ ; este caiu em desuso, foi trocado por ‘Saúde!’. Isso se alguém estiver prestando um mínimo de atenção em quem espirrou, o que nem sempre significa preocupação com a saúde alheia. Muitas vezes manifestam-se votos da boca pra fora.  A cabeça pode estar longe dali, ligada à morte da bezerra...
     Por essas e outras é que acho muito estranho ouvir tantos ‘Glória a Deus’ e Deus te abençoe’. Desconfio de contaminação entre as crenças, pois certas demonstrações deixaram de caracterizar este ou aquele fiel, viraram hábitos de todo mundo. Então, Glória a Deus  por mais estes rabiscos e Deus te abençoe por prestigiá-los.

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M. Inês Prado
Julho/13
Publicado no Edição Extra de 27/7/2013

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Rabiscos de Minês: ALEGRIA, ALEGRIA

Rabiscos de Minês: ALEGRIA, ALEGRIA:                                                      Alegria, alegria    A moça chega para faxinar minha casa, trazendo junto a alegria...

ALEGRIA, ALEGRIA

   A moça chega para faxinar minha casa, trazendo junto a alegria de viver e trabalhar. E como trabalha! A semana dela é cheia, corrida, suada. Troca-se, toma café, cantarola, assobia. E põe a mão na massa. Mas, antes, num ritual divertido, pega fones de ouvido, desembaraça uns fiozinhos marotos, engata-os no celular e explica:
   _  Ponho um só, tá vendo? Assim, se a senhora me chamar, eu escuto.
   E lá vai ela, vassoura, balde na mão, a cantarolar, sob uma FM da hora. Une o útil ao agradável e faz questão de frisar que os problemas ela deixa em casa. O que tem solução tem, o que não tem, vai levando...
   Interessantes as lições de vida que se colhem a cada dia, através de pessoas simples, mas sábias. Um espírito de porco subestimaria tal sabedoria, diria que é conformismo.
     O que tenho aprendido com gente humilde daria um compêndio. Adoro o jeito de se expressarem, pois falam com o coração aberto. Creio que a luta que enfrentam, desde pequeninos, os deixa fortalecidos  para as batalhas mais pra frente.
    Alegria, alegria.  Noto que as unhas das mãos calejadas de tanto cavar,  plantar, colher, cortar, debulhar, limpar, polir,  ganharam esmalte no último final de semana.
    Como essa moça, milhões de sofridos acumulam quilômetros rodados a pé, de bicicleta, de mototáxi ou do que calhar,  para ir à escola ou  ao trabalho,  ou  ainda para comprar  míseros gêneros alimentícios e medicação nem sempre obtida do poder público. Pode ser que frequentem alguma igreja ou, eventualmente, alguma diversão. Se bem que a TV, presente em qualquer casebre, os entretém em casa mesmo. 
    Críticas aos Faustões da vida não faltam. Os letrados são mestres nisso. Só que, para quem não tem alternativas outras de lazer e, mesmo alfabetizado, não é dado à leitura nem a trabalhos manuais, o que sobra é a  televisão e sua programação sofrível.
   Embora as políticas municipais de se levar entretenimento à periferia, falta muito para preencher as lacunas de lazer aliado à cultura – teatro, cinema, palestras, leitura itinerante e outras iniciativas, que proporcionem  inserção literal na sociedade.
   Mas, retomando a alegria, alegria, da moça da faxina. Além do cantarolar e do assobio, ainda traz interesse por revistas para os trabalhos escolares da criançada da família. A mãe/avó  ajuda a caçar palavras, recortar figuras, enfim, participa da vida estudantil dos pequenos, coisa que muita gente “bem” não faz.
   Impossível não comparar a atitude dessa mulher batalhadora com a de mães e pais que só conhecem os mestres dos filhos, quando estes estão com a corda no pescoço. Caso contrário, não têm a mínima ideia do que os filhos estudam na escola, se escrevem bem ou mal, qual o cronograma de provas e trabalhos e, se duvidar, nem a caligrafia deles reconhecem.  Acham que já cumprem a obrigação, com a compra do material didático, acompanhada de lamúrias por causa do preço absurdo que lhes sacrificará as prioridades da vida superficial que levam,  como  academia, cabeleireiro, manicure, butique, botox, carro do ano, restaurantes, Disney e outras.
    Alegria, alegria, a moça assobia, ao som da FM. Ela está entre os milhões de brasileiros que amargam condições de vida terríveis, como a violência desenfreada (há meses um irmão dela foi assassinado por engano) e o vergonhoso atendimento do SUS e suas barbaridades, que vão desde diagnósticos equivocados, comunicados “na lata” (ex.: câncer), até “taxa” para expedição de cópia de prontuário. Será que ela deve depositar alguma fé  nas recentes manifestações de rua?

M. Inês Prado    Jul./13

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Homenagem a Águas da Prata

  HOMENAGEM A ÁGUAS DA PRATA                                                                    Entrelaçamento
                                                                              Autora: Maria Inês de Araújo Prado
Com filhos ou sem eles, casamentos rendem muitos frutos decantados em prosa  e vero pelo mundo afora. Alegrias, tristezas, mudanças, sonhos, aliados a  tudo mais pelas mãos do escritor, formam entrelaçamentos incríveis.
Por estes dias me dei conta de que, mesmo antes de nascer, “este fruto” já estava entrelaçado à Rainha das Águas, cenário da lua de mel de meus pais e, mais de cinquenta anos depois, palco em que viveram as derradeiras cenas de amor ímpar.
Longe daqui, nasci, cresci, casei, tive filhos. Logo chegou a fase de buscar um cantinho para passar as férias; sem viagem, elas não tinham tanta graça. Aliás, o mundo virou do avesso, mas certos hábitos se mantêm – férias, feriadão, a família tem que viajar, não importa a que preço.
Prata, com seu ar puro, tornou-se, então, muito especial para nós. Testemunhou os primeiros tombos de nossos meninos a cavalo; ofereceu-lhes o encanto do bosque, com sua fonte d’água  fresquinha, seu macaquinho que tanto os divertia. Os passeios de charrete com o seu Ventura eram uma delícia! Verdadeiro patrimônio da cidadezinha, fico feliz em vê-lo, ainda hoje, firme no posto, a contar suas historias e ler nossas mãos.
Ah, se as paredes do antigo Hotel São Paulo falassem... Quanta traquinagem dos meninos por aqueles corredores! E jamais esqueci o corre-corre de todo mundo, quando faltou água no hotel inteiro, coincidindo com uma epidemia de diarreia...
Anos se passaram, parte da família se mudou para o interior. Nos fins de semana, pegar o carro e dar um pulo até Aguas da Prata era programa obrigatório. A meninada aproveitava a valer, alimentando as pombinhas, uma festa para os olhinhos curiosos (pena que esse momento de descontração esteja hoje proibido!), esbaldando-se no playground do bosque, comendo uma espiga de milho bem cozida e quentinha. A alegria da criançada restou perpetuada em muitos álbuns manuseados à exaustão e desmembrados, à medida que a turma cresceu e cada um tomou seu rumo.
Essa mudança para o interior (São João da Boa Vista) me proporcionou reencontro com uma pessoinha inesquecível – Lourdes de Jesus. Nos anos 60, sua voz divina iluminara meu casamento e, décadas depois,   Lourdes, com seus olhos sorridentes, refletindo o mar santista deixado pra trás, encantava os pratenses.  Entrelacei-me estreitamente  a ela, cuja vida daria um belo romance. Compartilhei seus últimos dias. Lourdes amava Prata!
Por fim, meus pais, já idosos e não tão saudáveis, venderam a chácara onde tinham vivido por quatorze anos e fixaram moradia nesse pedacinho do céu que passou a fazer parte da minha rotina. Decorei as curvas da estrada São João – Prata, especialmente a que nos permite deparar com uma janela gigantesca pintada de verdes mil, onde a igrejinha encantadora reina soberana. Essa visão é um banho de paz que não canso de tomar.
Da casa de meus pais, curtíamos o barulhinho gostoso do rio e o verde do morro em que a devastação, lamentavelmente, já era realidade. Vez em quando, um comboio e o apito tradicional invadiam a paisagem. Pena que o passeio de trem da lua de mel meus pais não chegaram a repetir. Saudade deles!
Tudo passa. Risquei Prata do mapa por um bom tempo. Quando muito, ia aos bailes da Velha Guarda, pois, a noite disfarçava tudo que me evocava  recordações, algumas muito dolorosas.
Aos poucos, superei as ausências dos meus queridos e voltei a admirar o janelão que se abre no fim da curva. O bosque dá boa meditação, no sossego dos dias úteis... A água com bicarbonato me cai bem. O Cristo... ah, creio que ainda me espera  de braços abertos e acolhedores.
Enfim, Águas da Prata é poesia, é magia. Quem sabe, um dia, esse namoro entre mim e ela acabe em casamento. Entrelaçamento.
Obs. 2º lugar – Concurso Ademaro Prézia de Literatura - 2006




domingo, 30 de junho de 2013

Rabiscos de Minês:                                                   ...

Rabiscos de Minês:                                                   ...:                                                                 O gigante tem cócegas    Meus pais, eternos apaixonados, eram discretos n...

O Gigante tem Cócegas

Meus pais, eternos apaixonados, eram discretos nas demonstrações de carinho entre eles, quando estavam fora das quatro paredes. Brincadeiras de um com o outro, na frente dos filhos, eram raríssimas, mas uma está vívida como se tivesse sido ontem.

Num sábado à tarde papai fazia a sesta, luxo a que se permitia apenas no fim de semana. Cochilava gostoso, quando mamãe resolveu acordá-lo por algum motivo qualquer, talvez para um cafezinho com bolinho de chuva.  Só que inventou um jeito divertido de despertá-lo: com uma escova de lustrar sapatos, passou a alisar os pés do Dan, ora um, ora outro. Papai não se mexia, parecia desmaiado, enquanto ela insistia. De repente, ele nos surpreende com um pulo daqueles, assustando todo mundo.  Em seguida, um tremendo acesso de riso toma conta do quarto deles. Mamãe, muito vermelha, perde até o fôlego. Mas o “troco” vem rapidinho: papai a pega de jeito e a joga na cama. Em seguida, quase a mata de cócegas por todo lado. Que judiação essa lição que papai, um homenzarrão mui cavalheiro, deu para sua Edy. Tenho certeza de que ela aprendeu muito bem que com cócegas não se brinca. Ela e a filharada toda.

Pois bem, nestes dias, nosso Brasil,  “gigante pela própria natureza”, quieto demais nas últimas décadas, também reagiu a tantas provocações, cutucões, lero-lero, tapeação, corrupção, desmandos, inconsequências, ou seja, sua paciência se esgotou.

Por isso, ergueu-se, tenteando daqui e dali, tímido a princípio, deu alguns passos miúdos, depois mais longos, e ganhou espaço sem limites. Para susto da plateia de camarote, silenciosa e incrédula, ele criou coragem, ensaiou os primeiros urros, sacudiu o corpanzil, muniu-se de “bastas” e – que ousadia! – não deitou mais. Hoje, mais  forte que nunca, dá  indícios de que não sairá  de cena tão logo.

A “plateia de cima” reage, confabula, retroage, corre a divulgar ideias estapafúrdias, uma delas risível demais: “corrupção é crime doloso”!  A turma de lá vive um caos, mas parece ter entendido a mensagem do gigante, tanto que a ordem  é trabalhar como nunca, em busca de soluções urgentes.  A mamata acabou. Nada de jogos da Copa das Confederações.

O gigante, que carrega no bojo mais de 194 milhões de pensantes, estava adormecido desde o século 20. Agora, finalmente, entra em cena com performances inusitadas para os incautos ou confiantes demais na moleza dele. A plateia lá dos altos está temerosa e, se bobear, manietada.  Sua proteção é precária. Ela percebe que a confabulação tem que chegar a atitudes concretas e efetivas, que controlem o monstro insone, de olhos arregalados há muitos dias, fazendo barulho por todo lado,  e bagunçando a mesmice.

Basta de ser o gigante “do futebol, da mulher bonita e do carnaval”! O portento quer muito mais.

De fato, era mais que hora de o gigante acordar e fazer frege por aí, chacoalhando aqueles que tanto o perturbam. O fortão prova que não é brinquedo de ninguém. Sentiu cócegas, despertou, refletiu e, então, reage com bravura, dando  demonstrações claras de que não descansará tão cedo, ainda que à custa de muitos sacrifícios e tristezas.  Se é para ter show, que seja marcante, com tantas reprises quantas forem necessárias. O gigante revigorou-se. Quando sossegará? - incógnita que está deixando a plateia lá de cima de cabelo em pé. Para tapear a saia justa em que está metida, ela fala em redemocratização...

Veremos!

M. Inês Prado

Junho/13

sábado, 22 de junho de 2013

                                                                   Plebiscito abrangente
   Aborto, casamento gay, drogas, maioridade penal são questões que, todo dia, frequentam as páginas dos jornais e a TV.  Por isso, é nosso dever nos inteirar  das discussões que esses temas suscitam, refletindo e opinando, pois qualquer alteração no status quo afeta a todos nós, positiva ou negativamente.  Afinal, viver em sociedade implica submeter-se à legislação vigente. 
   Lidar com certas faces da vida é custoso, dá dor de cabeça, gera  constrangimento, exige conhecimento de causa, parcimônia, bom-senso e objetividade, esta a mais difícil, se a questão em pauta remexe  nossas dores decorrentes de alguma vivência pessoal. Evitar a influência da subjetividade é fundamental para uma conclusão isenta de sentimentalismo e/ou individualismo, ou seja, que vise ao bem comum.
  *Opinar se o aborto, em qualquer caso,  deve ou não ser descriminalizado  pode ser mais simples, se nunca nos deparamos com a terrível decisão de interromper uma vida. Há grupos insistindo que, até determinado tempo de gestação, ela inexiste. Mas não se pode ir pela cabeça dos outros; é imperioso mergulhar fundo nas nossas convicções, para obter  resposta ponderada, além de coerente com nossos valores.
  Se o primeiro vestígio de um botão  numa planta nos alegra, por que não nos alegrar com a notícia de um embrião? Se o embrião parece estar defeituoso, é preciso lembrar que flores também não são perfeitas. O feto é anencéfalo? Ora, já que a medicina faz descobertas surpreendentes de um dia para outro, quem nos garante que aquela vida em “botão” não terá “conserto”? Ninguém. Os exemplos em que a ideia do aborto entra em cena são inúmeros, passando, é claro, pela gravidez indesejada ou precoce, as que mais ensejam o aborto clandestino, motivo de inúmeras  mortes por infecção, hemorragia e outras complicações.
  *Para as gerações criadas no conservadorismo, o casamento gay é aberração. Mas seria útil  observar como a juventude encara a relação homoafetiva, para entender certos posicionamentos. Hoje, jovens heterossexuais que estejam em um lugar onde predomina a frequência de homossexuais encaram tudo com a maior naturalidade. Na verdade a cabeça conservadora e/ou presa a convicções religiosas projeta o que sente, tendo reações absurdas, como expulsar filho (a) homossexual de casa ou entender a opção sexual como doença a ser tratada, haja vista o projeto da comissão de Direitos Humanos, presidida pelo deputado Marco Feliciano – permitir a psicólogos oferecer tratamento para a homossexualidade, ou seja, a “cura gay”, segundo  críticos da ideia (FOLHA, A8, de 19/6/2013).
   *A descriminalização (que não se confunda com liberação!) das drogas é arma de dois gumes. Experiências em outros países mostram resultados divergentes, positivos ou desastrosos. O importante é pensar em termos de cultura brasileira, principalmente educação: o povo, de modo geral, está preparado para lidar com as consequências da descriminalização das drogas?  O Estado está estruturado para oferecer suporte e alternativas para os viciados e suas famílias? A sociedade já superou o preconceito e pode encarar, de frente, toda a complexidade do mal que destrói famílias inteiras?
   *Quanto à maioridade penal, está mais que na hora de cessar o paternalismo da sociedade e do Estado. A ladainha que envolve a idade de 16 anos para votar já deveria ter surtido efeito. O triste é que, enquanto a longevidade força o repensar de idade para a aposentadoria mais tardia, a ousadia ou a submissão dos  menores, estes muitas vezes postos “a serviço” dos maiores,  obriga-nos a repensar a maioridade penal, hoje 18 anos,  e sua redução para 16 anos. É mesmo muito triste!
   Essas questões polêmicas se arrastam, embora a urgência de soluções. Talvez um plebiscito abrangente seja o caminho mais sensato,  desde que a vontade do povo seja respeitada  e traduzida em leis, sem mais delongas. Basta de retórica, como tão bem retratam as manifestações públicas nos últimos dias, ao reivindicar atuação política e governamental correta e efetiva, em todos os âmbitos deste gigantesco  Brasil.

M. Inês Prado     Junho/13

  

sábado, 15 de junho de 2013

Recuerdos

                                                    Usted no me ensiño a olvidar

       Há um ano eu o ouvi pela última vez.   Não, não é bem assim, porque ainda o ouço, nitidamente, nos momentos que se relacionam com você ou conosco. E eles são muitos.  Sabe, por um tempão, eu mantive sua voz (como eu a amava!) na “secretária”. Assim, matava minha saudade, reprisando seus recados. Só que, num desses tantos reprises, apertei o botão errado, apagando tudo. E, acredite, foi, justamente, poucos dias antes de você imitar o condor. Teria sido ato falho meu, para me poupar de futuro masoquismo?
       Hoje o domingo amanheceu ensolarado, sol frio prenunciando o inverno. Fui visitar você, levei-lhe flores amarelas. Aproveitei para limpar a placa com seu nome, suas datas (qualquer hora escreverei sobre elas) e também a moldura do seu retratinho (você e seu  olhar distante). Esfreguei-as com limão, como sempre tenho feito, para reavivar o dourado. Então, joguei um pouco d’água em tudo e...
       _ Ai, que friiiio! Ai, ui! – pareceu-me ouvi-lo gritar, pois era assim que você reagia, quando ligava o chuveiro e a água ainda não estava bem quente.
       Chorei. E agradeci por você me fazer chorar. A gente precisa chorar, para não se afogar por dentro. (Reflexão forte, ainda que piegas. Dá pra falar de amor, sem nunca ser piegas?)
       Voltei para casa em paz, mas triste. Eu queria tocar aquela música do condor; você gostava tanto dela, dizia que lhe dava vontade de sair por aí, sem rumo, longe, bem longe!  Não a encontrei. Toquei outras que lembram nossos encontros e desencontros: Usted no me ensiño a olvidar, em Boleros Latinos (José Collantes), e também The Apology, interpretada por Luciano Pavarotti, em The mirror has two faces (Barbra Streisand e Jeff Bridges). Chorei mais, mas falta muito para pôr em dia este meu choro.
      Sabe, quando a tristeza bate, reajo, faço, crio. Vi umas bananas nanicas já meio passadas e não tive dúvida. Fiz uma bela calda, pus canela e limão para dar aquela cor avermelhada (limão tem tanta serventia!), acrescentei as bananas picadas. Logo o cheirinho inconfundível de bananada se espalhou pela casa, enquanto eu mexia tudo com a colher de pau, até que o fundo da panela aparecesse.
     Mexia e revivia nossa história, nossos hábitos. Lembra aquele lance de separar para você uma vasilhinha cheia de doce de colher, seu preferido? Aliás, nossas vasilhinhas se revezavam, pois você também me trazia coisas gostosas.  Agora, bocadinhos de doce para você, só em pensamento. Se bem que, esteja onde estiver, você pode até estar provando dos meus quitutes, não?
    Pois é, meu rapaz, você me falava sempre do voo do condor, grande abutre dos Andes. Você, profundo conhecedor da natureza, me ensinou muitas coisas, principalmente sobre a fauna e a flora Mas, decididamente, usted no me ensiño a olvidar .

M. Inês Prado
Junho/11

       

Rabiscos de Minês: Zorba, o grego e o Dia dos Namorados

                                        ‘Zorba, o grego’ e o  Dia dos Namorados

    No feriado de Corpus Christi a TV Cultura reprisou ‘Zorba, o grego’, produção grego-americana de 1964, dirigida por Michael Cacoyannis.
    A interpretação de alguns grandes da sétima arte me aqueceu corpo e alma: Anthony Quinn (1915-2001) mexicano inimitável, Alan Bates (1934-2003), lindo palmo de rosto,  Irene Papas (1926), grega de beleza forte, e Lila Kédrova (1918-2000), russa expressiva, ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvante.
    A canção Sirtaki, composta por Mikis Theodorakis, ficou famosa, pelo desempenho de Zorba, ao dançá-la divinamente, acompanhado pelo tímido Basil, escritor em crise de criatividade, que vai à ilha de Creta para reabrir a mina de linhito, herança do pai.
    Zorba, o grego, é um deleite, do começo ao fim, um cardápio variado para nossas emoções às vezes meio embotadas. Há momentos tragicômicos, como o desabamento do pretenso teleférico construído por Zorba, para transportar madeira. O fiasco da engenhoca leva todo o dinheiro do escritor Basil.
    Dois affaires servem de elo para todo o desenrolar da trama: o affaire entre Zorba e uma ex-cortesã francesa, dona da pensão “Hotel Ritz”, e o outro, entre Basil e uma viúva grega cobiçada por todos os homens de Creta.
    Zorba não leva o relacionamento muito a serio, parece praticar caridade, nas suas demonstrações de afeto para com a velhota, sua senhoria. Só que esta se alimenta dos mais altos sonhos, tal mocinha à espera do príncipe: enquanto Zorba viaja e se diverte com uma jovem, a pobre  sonha com um presente que pede para o amado,  metros  de cetim branco para o vestido de noiva...
    Por sua vez, Basil, sensível, poético, não resiste à beleza da viúva grega e os dois acabam nos braços um do outro, para revolta dos locais. Resultado: a “traidora” é condenada ao apedrejamento, do que Zorba tenta salvá-la, mas falha.
    ‘Zorba, o grego’, trazido para os dias de hoje, mostra que o século virou, mas as coisas do amor não mudaram muito, não do lado feminino. As mulheres do século 21 ainda alimentam devaneios com vestido de noiva, com palmo de rosto másculo,  com flores e laços. Continuam românticas inveteradas, embora todas as lambadas da vida, frutos talvez de escolhas cegas e/ou afoitas.
    Semana passada, assisti à reportagem feita numa cafeicultura, na vizinha cidade de São Sebastião da Grama. O tema? Desfile de mulheres que trabalham no cultivo do precioso grão e que estão experimentando o gosto da passarela pela primeira vez, com direito a cabeleireiro, manicure, maquiagem, vestido de festa e prêmios.  Transformadas em princesas por um dia, deram entrevistas e falaram de sonhos. Uma delas, morena de olhar expressivo,  declarou, com muita simplicidade:
    _ O que mais quero é ganhar um buquê de rosas. Nunca recebi nenhuma flor...
   Vou torcer para que o sonho dela se realize. Ao menos uma vez na vida, que ela sinta o coração aos pulos, abraçada a um belo ramalhete, tal qual debutante de 15 anos.
    Afinal, até quem ganhou buquês  vida afora,  não deixa de sonhar com flores e laços. Por mim, confesso que uma flor do campo, amarelinha,  colhida por um Zorba, durante um passeio de mãos dadas, far-me-ia mais feliz que dúzias de príncipe negro.
M. Inês Prado

Jun./13

domingo, 2 de junho de 2013

                                                        Medo se adquire?

     Fico emocionada, sempre que vejo pais e filhos brincando, numa boa.  Ali o amor se manifesta em plenitude, descontraído, puro. Ali se ensina e se aprende, a troca é linda!
     Mas há que se pensar nas tantas vezes em que brincadeiras mal dirigidas acabam se refletindo lá na frente, anos mais tarde, em medos aparentemente inexplicáveis.
     Por que uma criança se apavora com cães se, quando pequenina, adorava alisá-los?  Por que um bebê que mal dá os primeiros passos é capaz de subir numa cadeira e dela, num beiral de janela altíssima, sem nada temer, depois se transforma num adulto incapaz de andar de teleférico?  Por que um garotinho que, se deixasse, se jogaria na piscina funda, com  roupa e tudo, pouco tempo adiante se demonstra hidrófobo, sofrendo com a simples tentativa de molhar os pezinhos n’água salgada?
     Falo por mim. Tinha loucura para boiar, nadar, curtir o mar ao máximo. Nos tempos de criança a família grande ia à praia, levando as enormes boias de câmaras de pneus. Nelas, a criançada se amontoava e, sempre com um adulto por perto, divertia-se no balanço das ondas. Só que “espírito de porco” existe em toda família. Na minha não era diferente. O “português”, apelido de um tio por afinidade, tinha brincadeiras bobas, além de usar termos que marcavam a gente pro  resto da vida: polaca, bruaca, para a sobrinha gordinha – eu. Numa bela manhã, céu e mar se confundindo no azul indescritível, ele simplesmente virou a boia em que estávamos, eu e uns primos. Apavorei-me toda, engoli água até. Não é preciso dizer que, desde aquele “desastre”,  jamais consegui fazer muita coisa no mar, a não ser entrar timidamente, água até a cintura apenas, prevenindo-me das grandes ondas para equilibrar-me, e só.  
    Experiências negativas nos marcam e podem nos  atrapalhar  vida afora. Além de ser uma santista que não nada, também sou frustrada por não andar de bicicleta e mal cavalgar, embora o cavalo seja  meu animal do coração.
    Não pedalo porque, lá nos meus seis anos, meu  dedicado pai, querendo ensinar-me, teve a infelicidade de soltar-me antes da hora, naquele lance de ir segurando a bicicleta por trás, até que a gente se equilibre com segurança. Resultado: fui pro chão, numa rua de terra batida, ralando-me todinha. A aprendizagem parou aí. Nunca mais sentei numa bike.
    Cavalgo mal e mal, porque, numa das primeiras vezes que montei um cavalo, a sela não estava bem afivelada e zás! – virou junto comigo.  Agarrada às rédeas, fui parar na barriga do animal. Foi um sustão pra mim e pro coitado, mas não tirou minha paixão por cavalos. Aos poucos, consegui superar o trauma, recorrendo sempre à indagação: ”A sela está bem presa, moço?“ Tendo chance, escolho um lindão, daqueles bem  imponentes e com olhar de mui amigos, e dou uma voltinha, com pose de dona do universo. Na última aventura, um marchador levou-me por trilha em mata fechada, subindo e descendo morro, eu driblando galhos de árvores para não ser degolada. Um moleque franzino, meu “guia”, chicoteava o cavalo dele, esquecido desta falsa amazona lá trás.  A loucura valeu a viagem a Termas de Jurema, lugar badalado que não faz meu gosto.
     Retomo a questão: Medo se adquire? Dizem que criança não tem medo de nada. Por isso, a lição que fica é que, talvez, a gente aprenda a ter medo, não apenas pelas advertências, desde pequena, mas pelas experiências negativas - os sustões.
M. Inês Prado
Jun. /13